domingo, 14 de agosto de 2011 | By: Daíza de Carvalho

Rita Braun traz a Limeira memórias do Holocausto

Daíza Lacerda

Na defesa da liberdade de credo e raça, sobrevivente alerta contra iniciativas racistas 

"É preciso atenção. Um toco de cigarro na floresta pode se tornar um incêndio incontrolável". Aos 81 anos, é com propriedade que Henrietta "Rita" Braun faz o alerta diante das demonstrações de intolerância contra crenças e raças, tanto no Brasil quanto mundo afora, como o recente ataque na Noruega.
Radicada no Brasil desde os 17 anos, em sua Polônia natal presenciou, ainda pequena, uma "higiene mental contra judeus", antes de sua família ir para os campos de concentração de Hitler. "De 40, sobraram quatro", disse ela ao relatar aos alunos do Colégio Anglo Portal as fugas com a família pela sobrevivência durante o Holocausto, em sua infância. O encontro foi na quinta-feira e contou com alunos do 9º ano, os três anos do ensino médio e curso pré-vestibular. Dos jovens, Rita tirou lágrimas, mas também risos.
Filha de pais separados, os primeiros sinais concretos da guerra e do cerco de Hitler contra os judeus vieram pelo céu, em 1939. "Eu tinha uns 10 anos e estava com outras crianças na fazenda do meu padrasto olhando os formatos das nuvens e com o que elas pareciam. Foi quando apareceram aviões voando tão baixo que eu podia ver a cabeça dos pilotos. Era incomum aeronaves naquela região da Polônia", descreveu.
Não demorou para vizinhos alertarem a família que russos estavam chegando para invadir e saquear a região. Foi quando ela, a mãe, o padrasto e a meia-irmã fugiram com sete carroças e 14 cavalos. "Refugiávamos no mato e, para mim, parecia uma aventura de Peter Pan, porque achava que a invasão dos russos não passaria de 15 dias e poderíamos voltar. Aquelas foram minhas últimas férias e mal sabia que não voltaria ali em cinco anos".

ESCOLHA DE SOFIA
O pai de Rita vivia com a esposa e o bebê, e era com ele que a jovem passava as férias. Até as tropas alemães chegarem com seus caminhões nos prédios ocupados por judeus. "Levavam só homens, tanto idosos como jovens. Por um tempo, os jovens voltavam. Já os mais velhos cavavam valas e, para economia de balas, fuzilava-se cinco de uma vez. O primeiro recebia a bala mortal e os que estavam atrás dependiam da sorte. Se a bala não acertasse o último, este fingia-se de morto e se jogava também na vala, para tentar se salvar entre os cadáveres, terra e cal".
A chegada dos alemães ocorreu primeiro no bairro de seu pai, quando ela passava as férias com ele e sua família. Ao serem detidos nos caminhões, um mensageiro deteve a família com um documento, para buscar Rita, assinado pela mãe. Embora o homem fizesse a busca mediante pagamento, apresentara-se como tio, alegando que a menina seria levada equivocadamente como judia. "Meu pai disse que não poderia escolher por mim, que não saberia quem sobreviveria, se ele ou minha mãe. Disse que a vida era uma só e que eu deveria decidir se ia com ele ou voltava para minha mãe. Independente da decisão, não se zangaria comigo. Não tive tempo para pensar, tudo era muito assustador, mas decidi voltar para minha mãe. Ele, que usava uma braçadeira com a estrela de Davi, me deu um saco de moedas, caso houvesse um bombardeio ou faltasse comida".
Com tão pouca idade ela teve o momento mais difícil de sua vida. "Me senti uma carrasca ao ter de escolher entre minha mãe e meu pai. Não podia me perdoar", relatou à Gazeta.
Em outra oportunidade conseguiu se despedir do pai, quando foi a última vez que o viu. Vítima de tifo, para não contaminar os outros e "economizar balas", o destino de seu pai no campo de contração foi ser jogado em cercas elétricas até a morte. A esposa também foi morta e o filho, ensacado vivo antes de ser jogado numa vala com terra e cal, "o cardápio dos nazistas", como pontua.
O bebê poderia ter sido salvo. "Uma família católica estava disposta a cuidá-lo, até ver que era circuncidado. Era uma passagem para a morte. Então o devolveu à família".

VIDA NO GUETO
Rita foi com a mãe, padrasto e irmã para o gueto, que era uma espécie de "baldeação" antes da chegada aos campos de concentração. "Era um bairro cercado no qual já havia inquilinos como ratos e baratas. Havia uma entrada e uma saída, vigiados. Lá passávamos frio, fome e contraímos tifo". O campo de concentração seria a próxima parada quando houvesse vagas.
Enquanto a família trabalhava (sem receber pagamento) e se alimentava nos empregos, Rita procurava no lixo ossos ou membrana de fígado, além de grama para ser cozinhada como opções de alimento. Motivo pelo qual o deperdício e intolerado por ela e sua família.
A rotina tinha quase diariamente cavalos brancos mas, em vez de príncipes, traziam algozes que atiravam em qualquer coisa que se mexesse, indiferente que fossem crianças. Era quando ela se escondia atrás de árvores ou arbustos.
Quando a família soube que o gueto "entraria em liquidação", que era o passaporte para os campos, a mãe comprou de um padre, com as joias que guardara, três certidões de nascimento alteradas para sair do local. Todos ganharam novo nome com registro católico.

CRUELDADE E SOBREVIVÊNCIA
Além das novas identidades, um alemão cuja casa a irmã trabalhava ajudou na sobrevivência da família, inclusive para acobertar seu padrasto, que, diferente dela, da mãe e irmã, tinha a aparência do "típico semita". Isso incluía usar chapéu tipo tirolês e a suástica no braço, para não ser descoberto. Passaram outros anos se escondendo e chegaram a ser submetidos a exame de sangue para determinar se eram semitas ou arianas. "Depois de três dias, por mais que minha mãe nos tranquilizasse que isso não era coisa que fosse determinada pelo sangue, fomos declaradas arianas e dignas de conviver com a pura raça", ironiza.
Vivo, o judeu não tinha valor. Morto, aproveitava-se desde o seu cabelo para fazer travesseiros como a gordura para fazer sabão. "Comandantes levavam crânios de judeus como adorno para suas casas. Não era coisa de 10, mas de 100".
O fim da guerra não era garantia de vida longa no local. Foi quando veio com a família para o Brasil, onde morava um dos tios, que viera como turista antes da guerra e aqui ficou.
Antes de aportar em Santos, a família aguardou, em Paris, por seis meses, o visto de Getúlio para entrar no País. Mas os contornos da ditadura não a assustou. "Aqui não tive medo. É um povo que aceita as diferenças. Meu país é o Brasil".


Realidade irretratável e perigo contemporâneo

"As pessoas assistem filmes sobre o Holocausto e perguntam se é tudo aquilo mesmo. Na verdade, é muito mais. Os judeus eram cobaias humanas", diz Rita, que acompanhou o neto, que quis visitar Auschwitz, onde jazem cinzas e flores entre os fornos crematórios e chuveiros de gás. Voltou também à Polônia, mesmo tendo adotado o Brasil como sua casa desde que aqui chegou, aos 17 anos.
Ela teme "os filhotes de Hitler", que exemplifica com o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Outro alerta é para ação de skinheads, que pregam a supremacia de brancos, grupo que se mostra mais forte na região Sul, considera.
Ela reflete também os ataques a homossexuais, sobretudo quando este tipo de união passa a ser prevista pelas leis brasileiras. "Os ataques acontecem justamente por haver brechas, o que os preconceituosos não toleram. Qualquer minoria está sujeita a isso se não tomarmos providências", reforça, sobretudo com a ação iminente de neonazistas.
E foi justamente a situação contemporânea, discutida em sala nas aulas de História, que levou a professora Rita de Cássia Salmazo a aprofundar o assunto, até chegar a Rita e convidá-la para o encontro com os alunos. "Diante dos acontecimentos mundiais, como o ataque na Noruega, é muito importante que conheçam o passado e como a atualidade pode servir de alerta", diz a professora.
A aluna Victoria Forster de Almeira, 18, concorda. "Por mais que saibamos o rumo da história, é diferente ouvir de alguém que esteve lá. Foi muito tocante e ao mesmo tempo é preocupante saber que ainda há pessoas que tem os mesmos ideais", preocupa-se.
Rita Braun não esquece do pedido, quando deixou seu país, de que quem sobrevivesse contasse a história, para que não se repetisse. "Quando cheguei aqui me propus a pagar a dívida. Palavras o tempo apaga e o vento leva". Por isso registrou suas memórias em livro, distribuído em escolas, além de passar seus valores aos filhos e netos.
Ela, que declarou ficar honrada com o convite e conversa com os alunos, disse ter sentido plantar uma semente para que algo parecido com o que viveu jamais volte a acontecer. E deixa a sua mensagem. "Isso não deve ser esquecido. Devemos defender a liberdade de raça e religião. Não apenas no pensamento, mas na manifestação desse desejo". (DL)

Publicado na Gazeta de Limeira.






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