terça-feira, 26 de janeiro de 2016 | By: Daíza de Carvalho

A normalidade da barbárie

COLUNA RELEITURA 26/01/2016

A normalidade da barbárie

Daíza Lacerda

Eles estavam bebendo e conversando. Mas a história termina com a mulher morta e o homem preso, confessando o homicídio. Acompanhamos na semana passada o triste e cruel caso da servidora pública assassinada a facada pelo marido, que se entregou e se disse arrependido. Assusta. Mas vida que segue, certo?
Casos como esse chocam na hora, mas depois passam. Daí vem outro, depois outro, numa sucessão de tragédias que minam a nossa sensibilidade para aquilo que definitivamente não é normal. A culpa é da bebida, ou do governo, ou do sistema.
Aprendemos a conviver com pequenos e gigantes absurdos, tão intrínsecos no nosso dia a dia que nem passaria pela cabeça pesá-los com todos aqueles desvios que condenamos no Planalto Central. As proporções são muito diferentes, mas a falta de respeito no trânsito, por exemplo, não é um desvio menos grave do que o descompromisso de quem é eleito para trabalhar em prol da população. As duas coisas são sementes de violações maiores e crimes em potencial.
Mas, afinal, que peso têm os crimes em nosso cotidiano? Qual o limite da indignação? Será que enfiar uma faca no pescoço ou uma bala no peito já são considerados atos normais? A molecada fugir ou confessar a posse de droga não uma, mas dezenas de vezes numa semana já é parte irremediável do script? De tão corriqueiras, as barbáries tornam-se banais?
Na semana passada, vi um vídeo do diretor José Padilha, de Tropa de Elite 1 e 2, explicando o motivo de ter dado o fora do Brasil. Ele virou alvo após estampar nas telas verdades inconvenientes para poderosos de diversas escalas. Com convites de trabalho no exterior, foi com a família para Hollywood. Ele justificou o seguinte: o Brasil perdeu a sensibilidade do absurdo. Não conseguimos mais enxergar o absurdo.
O país dos Jogos Olímpicos 2016 é aquele no qual moleques matam para roubar uma bicicleta. É o que motoristas bêbados, sonolentos ou desatentos matam no trânsito e seguem impunes. É o que adolescentes que mal saíram das fraldas roubam veículos só para dar um rolezinho, sem remorso algum do trouxa que trabalhou para pagar o veículo e os impostos. É o que empresas desrespeitam clientes de todas as maneiras. Sim, aqueles que pagam por serviços que não têm ou não conseguem usar. E seguimos passivos, submissos. O inadmissível no primeiro mundo ainda é a regra no Brasil.
Muita gente já abordou isso em conversas de bar, mas muito poucos levam a questão a sério para refletir, sobre os nossos próprios delitos (usar vaga alheia só um minutinho, furar fila, comprar ingresso mais barato com carteirinha falsa, sonegar imposto...). E sobre como perdemos a referência moral. Ah, fulano é bom porque é honesto. Mas a honestidade não é uma obrigação de todo cidadão?
Então, quando formos bombardeados com 1.001 "eu fiz" nos próximos meses, não vamos nos esquecer que no principal ninguém chegou ainda: no cerne, na cultura. No extraordinário de inspirar pessoas a serem melhores e fazer de seu lugar o melhor. Para que não exista um consenso de normalidade num mundo em que pessoas simplesmente saem atirando, atropelando, esfaqueando. Afinal, como escreveu Jiddu Krishnamurti, "não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente".
terça-feira, 19 de janeiro de 2016 | By: Daíza de Carvalho

A culpa não é da chuva. É nossa!

COLUNA RELEITURA - 19/01/2016

A culpa não é da chuva. É nossa!

Daíza Lacerda

Vamos imaginar o seguinte: e se o dinheiro que municípios, Estados e União gastam com a manutenção dos desastres após as chuvas de verão fossem investidos (de verdade!) em estrutura preventiva durante a estiagem? Quanta de vidas seriam poupadas e tragédias evitadas?
Sim, parece óbvio demais. E é. Mesmo que, exceto por 2014, seja a mesma coisa todo ano, gestores relutam em tratar a questão das chuvas de verão com a urgência que demanda. Felizmente, não é o caso de Limeira, mas, na região, famílias desalojadas amargam o gosto da negligência, principalmente quem vive na beira de rios.
Mas vamos admitir que sobra culpa para todo mundo. Para nós, que somos responsáveis pela estrutura do nosso próprio imóvel e conservação urbana (não adianta reclamar de São Pedro ou da prefeitura se não checou os telhados ou as calhas ou se a boca de lobo entupiu!). E para o poder público, que não pode esperar verba cair do céu para um planejamento urbano à prova de tempestades. Ou resistente a elas.
É preciso lembrar uma coisa básica: nós somos os intrusos, a Mãe Natureza reage a partir da nossa interferência. Não adianta reclamar da seca ou da cheia, passou da hora de saber lidar com elas. Não adianta jogar nas costas do passado o fato das cidades terem sido concebidas sem a estrutura de drenagem ideal. É preciso viabilizar essa estrutura para ontem, antes que o ônus com manutenção chegue a patamares insustentáveis. E isso não é exagero.
Na última semana, vimos buracos nos mais lisos asfaltos. Erosões que nunca imaginaríamos que iriam comer a via pública. Por mais que tenhamos locais "sob controle", a chance de sermos surpreendidos a todo momento é imensa.
É urgente a criação de um fundo para a drenagem. Projetos, temos vários, mas se esperarmos verba do governo federal estaremos reclamando da mesma coisa daqui a 20 anos. Quem trafegou por Limeira nas chuvas da semana passada viu ruas se transformando em cachoeiras. A Lauro Correa convidava a descer surfando. É claro que nada é feito do dia para a noite, mas há locais que não podem esperar a burocracia de um convênio.
A educação também é uma ferramenta urgente. Muita gente aceita morar em locais que são verdadeiras armadilhas, alegando que não consegue pagar aluguel em imóvel melhor. Até a estrutura ruir e ser interditada, como já vimos em outros anos. Que adianta economizar para ter o que comer e não ter onde morar? As pessoas têm de saber como identificar os riscos. Comida não vai faltar, o Banco de Alimentos existe para isso. Mas a ignorância pode comprometer o teto de famílias inteiras. Essa questão poderia ser amenizada num convênio com as faculdades. Há inúmeros futuros engenheiros e arquitetos nas salas de aula que poderiam ajudar a Defesa Civil em diagnósticos dos locais com mais problemas e orientação para as famílias. A informação também pode prevenir tragédias.
Não é uma questão fácil de resolver, mas exige muita vontade e ação de todos. Tanto do cidadão quanto do poder público, que tem de assumir esse rojão e colocar em prática estratégias para começar uma mudança de cultura e de estrutura a longo prazo. Muita coisa custa mais disposição do que dinheiro. Afinal, reclamando ou não, as chuvas sempre virão.



Publicado na Gazeta de Limeira.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016 | By: Daíza de Carvalho

Queremos saber

COLUNA RELEITURA 12/01/2016

Queremos saber

Daíza Lacerda

O câncer levou Bowie. Levou Lemmy. Pode ter levado um ente querido seu. Quer levar um ente querido meu. Paira sobre anônimos e famosos, ora sorrateiro, ora brutal.
E quem diria que não são mais as drogas ou bebidas que acabam com os nossos rockstars. O início da vida louca se esparrama de dentro para fora, e não o oposto. Ninguém podia com a rebeldia. Quem pode com o câncer?
As manhãs chuvosas de segunda-feira estão se tornando símbolo de mau prenúncio para quem tem algum ídolo do rock que sobrevive a esses tempos. Foi assim em 28 de dezembro, com a morte de Lemmy Kilmister, vocalista e baixista do Motörhead, que havia descoberto em dois dias o câncer terminal no cérebro e no pescoço. Foi assim ontem, quando acordamos sem Bowie, que escondia do mundo há um ano e meio a sua doença. Foi assim em maio de 2010, quando um câncer no estômago levou Ronnie James Dio, a quem é creditado o icônico chifrinho feito com as mãos, marca dos roqueiros.
De todas as fontes virtuais que propagaram a morte de Bowie, encontrei pouquíssimas especificando, afinal, que tipo de câncer levou o camaleão. Elas davam conta de tumor no fígado, que seria um dos mais perigosos e silenciosos. Na inconformidade de fãs, até a fosfoetanolamina foi invocada como uma possível salvadora do rei do pop - e de tantos outros que acabam por deixar famílias em luto. Era um tom de "a solução está na nossa frente e ninguém faz nada".
Me pergunto, de fato, o que se faz, no Brasil e no mundo, para acabar com o câncer. Quando órgãos que mal conhecemos são invadidos e o corpo condenado a definhar até se render. A verdade é que queremos nos agarrar a todo e qualquer vestígio de esperança. Vamos além. Queremos vida eterna a quem nos faz feliz. E ainda não entendemos bem sobre os custos de uma vida longa. Muito menos de vidas curtas.
Sem as licenças e testes necessários em seres humanos, a fosfoetanolamina é apenas mais uma salvação imaginária para nos apegarmos. Se o seu criador e a comunidade médica vão levar adiante as burocracias e desafios para a sua comercialização, é uma incógnita da qual seremos reféns, assim como as vítimas.
Sabemos que nosso modo de vida atual é, em mais situações do que imaginamos ou gostaríamos de reconhecer, a porta de entrada do câncer. Mas, se a humanidade chegou tão perto das estrelas, o que ainda a impede de conseguir desvendar as próprias entranhas? Fomos tão longe. Estamos no século, nas décadas, que mais evoluíram cientificamente, e ainda somos marionetes. A ameaça invisível ri de nós.
Onde está a cura do câncer enquanto o homem cria bombas cada vez mais destruidoras? Onde está o financiamento de pesquisas quando armas continuam a se multiplicar, tão rapidamente quanto os tumores?
Este é o nosso mundo. Perguntas sem respostas. Na minha cabeça, elas ecoam na composição de Gil, imortalizada na voz de Cássia Eller. Que também morreu cedo, vítima das peripécias do corpo humano. "Queremos saber/ queremos viver / confiantes no futuro / por isso se faz necessário prever / qual o itinerário da ilusão / a ilusão do poder / pois se foi permitido ao homem / tantas coisas conhecer / é melhor que todos saibam / o que pode acontecer / queremos saber, queremos saber / queremos saber, todos queremos saber".

Publicado na Gazeta de Limeira.
terça-feira, 5 de janeiro de 2016 | By: Daíza de Carvalho

O sonho olímpico cabe dentro de um segundo

Nós, pobres mortais, que banalizamos tanto o tempo, não temos a mais remota ideia do significado de um minuto para aqueles que vão representar a nossa Nação nas Olimpíadas. Não temos noção que segundos colocam ou tiram alguém do pódio. As marcas dos primeiros na 91ª corrida de São Silvestre são um exemplo: 27 segundos separaram o primeiro do quinto colocado masculino. No feminino, a limeirense Tatiele de Carvalho chegou dentro dos mesmos 54 minutos da primeira colocada, mas 42 segundos depois, em décima. Uma eternidade, quando se trata de esportes.
Em entrevista à Gazeta, o nadador limeirense Guilherme Guido explicou qual será a sua luta neste semestre, até os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro: ralar para baixar de 53 para 52 segundos o seu tempo nos 100 metros costas, para, aí sim, entrar no páreo dos seus adversários mais velozes.
O Brasil é um país que valoriza muito pouco o esforço dos seus atletas, talvez pela exposição massiva e glamour do futebol, que monopoliza as atenções dentro de um mundo imensamente rico de modalidades que, infelizmente, ficam à margem na seleção do torcedor. Assim, mal sabemos quem está nos representando mundo afora em outros esportes, e muito menos o que significa este representar. Como deve ser treinar meses para ganhar um segundo, aquele que pode dar ou tirar a medalha? Dedicar-se dias seguidos fazendo a mesma coisa, exaustivamente, abrir mão da vida social e da proximidade com a família para ser melhor naquilo? É uma busca que custa infâncias, adolescências, uma parte inestimável da vida produtiva. Isso, é claro, por opção do próprio atleta. Mas tem de ser valorizado.
Só que o Brasil que sedia a olimpíada não é o país que tem a cultura do esporte. Recentemente, a triatleta Ariane Monticeli, que também representa o Brasil e o mesmo clube de Guilherme Guido, o Pinheiros, relatou ter sido xingada nas ruas de São Paulo entre treinos de ciclismo na metrópole que tenta aumentar as ciclovias. Somos despreparados para lidar com a presença digna e crescente de ciclistas e corredores nas ruas. Claro que não é o lugar ideal. Mas para onde ir quando as opções são escassas para o tamanho da demanda e as calçadas convidam a tombos e lesões?
Das ruas podem surgir muitas promessas de sucesso, que têm de ser buscadas. Mas há um abismo entre o atleta amador e o de alto rendimento. Mesmo treinos longos e frequentes não transformam, necessariamente, um entusiasta em profissional. A linha que separa o lazer de obrigação tem peso de sangue e muito suor. Quem exemplificou um pouco disso foi Marílson dos Santos, campeão da São Silvestre diversas vezes e que vai representar o Brasil na maratona olímpica (42.195m). Em passagem recente pelo Sesc Piracicaba, ele contou que já tentou fazer o mesmo treino dos quenianos, em três turnos. Não aguentou: mais perdeu do que ganhou em desempenho.
A pesquisadora Katia Rubio, da USP, define o atleta olímpico brasileiro como uma figura heroica. Ela encabeçou uma pesquisa sem precedentes que compila o histórico dos brasileiros que chegaram lá. Para ela, a teimosia fora do limite foi ingrediente para a conquista das 108 medalhas olímpicas por brasileiros. E só quem as buscou sabe mensurar quanta vida dedicada tem no segundo que os fizeram campeões. Outra cultura seria a do brasileiro, se soubesse reconhecer isso.

Publicado na Gazeta de Limeira.