sábado, 10 de março de 2018 | By: Daíza de Carvalho

Filho de Jango: "gerações deixaram de pensar o país"

Filho de Jango, João Vicente Goulart reflete o legado do pai e se candidata à presidência

Daíza de Carvalho

A família de João Vicente Goulart até hoje não tem uma resposta sobre a morte João Goulart, o Jango, presidente do Brasil que teve o mandato interrompido em 1964 com o golpe militar. Mudando-se às pressas com a família para o Uruguai em abril daquele ano, Jango jamais voltaria do exílio, situação na qual viveu os 12 anos seguintes à tomada militar no Brasil. A causa oficial da morte é creditada a um ataque cardíaco. A família, porém, acredita no envenenamento e, passados mais de 40 anos da morte de Jango, ainda busca um desfecho na Justiça.
A vida da família não seria a mesma a partir de 1º de abril de 1964. E nem a do Brasil.
O que o Brasil poderia ter sido sob a gestão de Jango e o que foi submetido com a sua saída e a entrada dos militares são questões ainda carregadas por João Vicente. O menino que viveu no exílio é filósofo, foi deputado e agora se candidata à presidência da República, numa sigla nova, o Partido Pátria Livre (PPL), um partido de ideologia, como define. Trazido a Limeira pela USTL ontem, ele falou do passado, avaliou o presente e expôs propostas para o futuro, do qual espera estar à frente, assim como esteve o pai um dia.
"A NAÇÃO QUE PERDEMOS"
Goulart lançou, no ano passado, o livro de memórias "Jango e eu", no qual descreve o cotidiano da família exilada entre a saída do Brasil e a morte do pai, em 6 de dezembro de 1976. Uma continuação será escrita, com previsão de publicação daqui a dois anos. O título provisório, "Jango - a nação que perdemos", faz jus ao objetivo de retomar a narrativa com as propostas de Jango que foram interrompidas. A obra será feita em parceria com o instituto de história UERJ, que fará a pesquisa documental detalhada de todas as reformas então previstas, como a agrária, urbana, tributária e educacional, para evidenciar "o que o Brasil perdeu ao não fazer essas reformas". "O livro vai trazer não só a memória dos personagens que atuaram em cada item dessas reformas, como Paulo Freyre na educação, mas uma visão muito atual. Vamos relatar a necessidade que tinha em 64 e comparar com o que acontece hoje no país para demonstrar exatamente o quanto elas ainda são necessárias, como a reforma agrária, tributária".
1964 x 2018
Sobre as marcas da ditadura que o país ainda carrega, avalia que as cicatrizes vão além do aspecto brutal dos desaparecimentos e cerceamento da liberdade. "Sofremos ainda algo grave. A ditadura impregnou duas gerações de brasileiros que deixaram de pensar o país. Pessoas com mais de 60 anos conhecem as lutas das reformas de base. Depois veio um branco que foi exatamente a época da ditadura, que não deixou essas gerações raciocinarem o Brasil. Antes de 64, o Brasil vivia numa ebulição cultural, com a Bossa Nova, Cinema Novo. Surge o teatro de arena, os debates universitários nas esquinas. O Brasil debatia não só a sua origem como o seu futuro. Isso acabou em algumas gerações. Houve uma submissão ao processo de bestialização cultural importada dos Estados Unidos, com o hamburger, o x-burger, as bandas de rock americano. Houve um aculturamento da nossa cultura, que foi deletada do processo de discussão".
Para ele, a economia é tão bestializada quanto foi a cultura, o que dificulta a retomada do caminho das reformas diante de um senso no qual "tudo o que é externo é melhor". "Precisamos atingir a população jovem com essa memória do que foram as lutas nacionalistas por um 'Brasil brasileiro'. Temos que recriar a cultura do socialismo moreno, não precisamos importar, mas prezar e multiplicar a cultura divergente dos estados brasileiros"
PROPOSTAS
Sobre a situação da intervenção no Rio de Janeiro, ele avalia a questão como uma jogada de Temer para tirar o foco da polêmica previdenciária. "Claro que há um processo de violência enorme no Rio de Janeiro, mas a Bahia tem números muito piores estatisticamente de assassinatos e latrocínios. Por que não foram lá?", questiona. "É um problema nacional. Darcy há 20 anos já dizia: se não fizermos escolas dignas, em 20 anos estaremos construindo cadeias. Está aí o Temer liberando R$ 45 bilhões para os Estados fazerem cadeias. Violência se combate com presença do Estado nas comunidades, com uma reforma inclusive fundiária, urbana, para dar dignidade aos moradores, integrá-los à cidadania. Com uma escritura do seu local, ser integrado à defesa do Estado brasileiro. Se o traficante entrar, o Estado é obrigado a defender a propriedade privada que é dele. Da propriedade do barraco à do fazendeiro".
Em relação à educação, a ideia é tirar o ensino de base da tutela dos municípios. "A federalização da educação de base é uma obrigação nossa. É preciso, no mínimo, saber ler e escrever".
Quanto à reforma da previdência, defende que deve ser feita, mas para os que estão entrando no sistema agora, não para os que têm direito adquirido. "Também tem que estabilizar essas diferenças do setor privado e público, mas sempre dos que entram agora", salienta, lembrando que "não existe déficit da previdência. O que existe é a falta de cobrança efetiva dos valores dos grandes bancos e setor rural". Ele condena também a extinção da pasta que deveria cuidar do assunto. "Fazer a reforma da Previdência sem um Ministério da Previdência é absurdo".
VEIAS ABERTAS
Questionado sobre como lida com o histórico da família e das faltas, principalmente das respostas sobre a morte do pai, mais uma vez ilustra a condição brasileira. "A morte do presidente João Goulart não foi concluída. O próprio Ministério Público Federal entende isso, o processo continua aberto. A procuradora que cuida disso tem pedido informações ao governo americano, e até hoje não tem resposta. Porque o Brasil é insignificante para o governo americano. Não temos soberania suficiente para exigir nada. É direito de um país saber o que aconteceu com seu ex-presidente. Teria que ter a soberania, coragem. Mas, mas para isso, só um governo emanado do povo, não um fantoche".
Na insistência da pergunta sobre sua condição particular diante dessas faltas, o filho do ex-presidente recorre à esperança. "Ter a questão em aberto faz parte da luta. Vamos continuar lutando. Um dia a gente consegue esclarecer isso para a história brasileira, que merece ter esse esclarecimento".



Legados e desafios

"O legado de Jango é de uma nação brasileira. Quando ele assume o poder em 1961, sua preocupação é terminar aquilo que Vargas não concluiu. Temos que revisitar esse legado inconcluso, discutir novamente as reformas bancária, tributária, agrária, educacional, a reintegração do patrimônio que foi privativado, a proteção da Amazônia, começar a construir a nacionalidade do Brasil".

O partido sem R$ 1 bilhão

"Somos um dos partidos mais ideológicos dessa gama que vai disputar a eleição em 2018, enfrentando a traição de grandes partidos, que criam um fundo eleitoral de R$ 1,7 bilhão para se autoproteger. É onde estão os picaretas que precisam de foro privilegiado para se manter. Nós não temos acesso a fundo eleitoral, nem a participação em debate. Temos 6 segundos mínimos na televisão. Só porque somos um partido novo e não temos deputados e senadores? É uma ilegalidade. Isso mostra o temor que eles têm dos partidos ideológicos, tão profundo que fazem questão de esfacelar. Mas vamos até o fim. Missão partidária se cumpre, não se discute".

Diálogo com fascistas

"Entendo que a democracia é um grande diálogo e convivência com as diferenças. Tentarei dialogar, só não podemos aceitar ataques gratuitos, sem fundamento lógico. O debate é a grande arma da democracia, conversar com opositores é parte disso. Jango recebeu Lacerda no exílio, e foi quem o derrubou. Temos que ter a flexibilidade de conversar com todas as correntes".


Sem medo das fake news

"Quem usa muita fake news é porque não tem a verdade da palavra. Nós temos a força de nossas palavras, consciência da nossa história. Nós temos o que dizer. Fake news é para quem não tem o que dizer. Temos milhares de coisas a dizer, a construir, exemplos já realizados no país e respostas àqueles que nos derrubaram".