quarta-feira, 21 de março de 2012 | By: Daíza de Carvalho

Sobre a (falta de) vida e amor na(s) cidade(s)


Outro dia escrevi para um amigo que seria ingenuidade esperar humanidade num ambiente corporativo. Agora vejo que sou tão ingênua quanto, ao sonhar com cidades mais humanas. E menos mecânicas. Menos velozes.
Apesar da maravilha de não parar num só lugar, essa vida que levo entre interior e capital é de amargar ao constatar o quão retrógrados podem ser esses dois mundos separados por 150 km e diversas cidades. Principalmente quando querem se modernizar.
No sábado, estava de frente com uma estátua de Cervantes, que ganhou um coração. Ele, pelo menos, tinha um. E os milhões de desconhecidos que passam por ele naquele início da Consolação?
A iniciativa, que abrange várias estátuas da metrópole paulista, é um mero lembrete pra mim, pra você, que temos algo pulsante "aqui dentro". Tão pulsante quanto o vai-e-vem de veículos e pessoas, que transformam vidas em dias. Alguém se lembra de transformar dias em vida?
O ponto em que quero chegar é o quanto as coisas são priorizadas em detrimento das pessoas. Isso não é novidade, mas são necessários exemplos gritantes para essa realidade estapear a nossa cara. E acabei de levar essa bofetada ao tentar adotar um caminho alternativo na volta para casa, do trabalho. Ao seguir pelas ruas dos bairros em vez das avenidas principais e anel viário esperando um pouco mais de tranquilidade, me senti num daqueles jogos de pinball, sendo jogada de um lado por outro pelos Schumackers da vida. Ultrapassagens suicidas, conversões como se ninguém mais estivesse nos arredores ou precisasse da rua e velocidade infinitamente além do ideal em área residencial foram uma supresa (nada nova) para a minha ingenuidade adormecida. O fato é que as pessoas se arriscam por pouco, num espaço que prioriza estritamente as máquinas. Entrei no Interlagos do interior. Conhecido também como via pública.

PASSAR POR CIMA - LITERALMENTE
Por menos que eu queira admitir, a busca por uma nova rota foi pelo medo de terminar como duas pessoas na última terça-feira, em Limeira. Literalmente, terminar. Constatei que por mais que refaça o caminho do centro de Limeira ao meu bairro, será impossível chegar em casa sem passar por pelo menos uma rotatória. Uma motociclista de 23 anos morreu numa das inúmeras rotatórias ontem. Um carro bateu na traseira de sua moto, e outro a atropelou. Situação parecida havia ocorrido 12 horas antes com outro limeirense, mas na rodovia. O carro não viu, bateu na moto, e outro passou por cima.
E se fosse eu? Se fosse a minha mãe recebendo uma ligação para ser informada que eu nunca mais voltaria para casa e provindeciasse quem buscasse o que sobrou daquele veículo que eu havia feito de tudo para comprar, e que me ajudava com o ganha-pão?
Nos dois casos citados, quem passou por cima das vítimas seguiu viagem. Só Deus sabe se um dia serão identificadas. Portanto, cuidado, há mais assassinos em potencial ao nosso redor do que possamos imaginar. Há poucas semanas, alguém bateu e outro passou por cima de uma ciclista em SP. Ela não chegou ao trabalho, sequer voltou para a família.
A morte pode ter duas, quatro, dezenas de rodas, e até nenhum motor. Mas ninguém está preocupado com isso quando a construção de magnânimas obras viárias rendem votos - e jamais irão sanar o caos do trânsito. Não há para onde ir, não tem para onde aumentar as ruas. O que precisa é tirar mais carros de circulação.


UTOPIA
Assumindo a minha ingenuidade com a última afirmação, hoje lembrei da ocasião em que David Byrne veio a SP falar de sua experiência como ciclista urbano em diversas cidades do mundo. Ele foi taxativo do quanto os estacionamentos são espaços desperdiçados. Onde poderia ter uma praça, ou local para convívio coletivo (reunir pessoas), é assegurado o direito do veículo para ter um espaço seja lá onde for (prioridade às coisas). Lembrei disso ao ler a notícia sobre um estudo que conclui que 1/4 de SP é de estacionamento. Na capital com menos árvores por km quadrado, logo logo haverá mais lugar para carro do que pra gente.
A indústria e o governo jamais deixarão de ser amantes para alavancar a produção, em nome do "progresso". Que, para mim (e muitos outros que só querem andar nas vias públicas sem sentir que a vida é ameaçada por uma máquina guiada por loucos a todo instante), não passa de retrocesso.
Também sou muito ligada ao passado. Sinto uma necessidade inexplicável de saber de onde viemos e como eram os lugares e as pessoas antes de eu chegar aqui. Por isso vou longe com pessoas saudosistas e livros de história. E, felizmente, mesmo as publicações contemporâneas têm resgatado e mostrado a queda livre social e de qualidade de vida que estamos vivendo. Um exemplo está na Época São Paulo deste mês que mostra como o Tietê na capital, que sediava campeonatos de natação, se transformou no que é hoje.
É por essas e outras que, quanto mais vejo a forma deturpada em que gestores pensam em seguir avante, mais quero me embrenhar no passado que hoje é utópico. Queria ter vivido na Limeira de ruas com paralelepípedos para não ter que noticiar que a prefeitura quebrou calçadas (lugar de pessoas) para deixar a rua com mais espaço para a fluidez dos carros (coisas). Felizmente, isso foi impedido em Limeira. Em uma situação. Mas enquanto não tirarem carros das ruas, mais das áreas das pessoas serão limadas para as máquinas e seus pilotos que só pensam em chegar logo em casa - e não simplesmente chegar, íntegro. E tampouco se preocupam se o próximo chegará ou se tem uma família o esperando.
Infelizmente, de São Paulo a Limeira, se fazem verdadeiros os versos de uma música do meu adorado Whitesnake: ain't no love in the heart of the city / Ain't no love in the heart of the town.

quinta-feira, 1 de março de 2012 | By: Daíza de Carvalho

Da primavera árabe ao verão limeirense

Das inúmeras bizarrices e inutilidades que circulam no Facebook, nesta semana apareceu em minha linha do tempo uma imagem que descrevia perfeitamente o momento político de Limeira. Numa tábua na beira do precipício, o povo fazia o peso sobre sua metade em terra firme, dando suporte, na outra ponta, ao governante na tribuna, que tinha apenas o vão infinito abaixo da base. Sem o apoio do povo, sua queda é certa. 
Só que neste mesmo canal que consome nosso tempo tantas vezes de forma improdutiva, nasceu e cresceu uma mobilização que contribuiu muito para a versão limeirense da primavera árabe. Guardadas, obviamente, as proporções e o fato de vivermos em condições políticas absolutamente diferentes. A comparação se deve a uma questão crucial em ambos os casos: o povo dar-se conta do seu poder e fazer uso eficiente dele. 
A prisão da família do então prefeito Silvio Félix e os indícios, ainda que não comprovados da possibilidade de o dinheiro público (o meu, o seu e de sua família) poder financiar dezenas de imóveis por meio de transações suspeitas de empresas do clã, tocou tanto a ira quanto o civismo (e, por que não, o orgulho) da população. Episódios de desvios éticos na política brasileira, provados ou não, são, infelizmente, corriqueiros. Mas o limeirense optou por não ter o seu governo como "apenas mais um". 
O fato de não ser uma investigação qualquer, tampouco feita por qualquer um, mas pelos profissionais do Ministério Público, com aval do Judiciário, levou as notícias a serem replicadas e os gritos de indignação compartilhados em caracteres (vozes?) que não têm hora ou limite para ecoar. Um ato aqui, outra panfletagem ali, mais algumas máscaras e adesivos de protesto. Camisetas, para vestir um ideal. O que parecia isolado, tornou-se único.
Nos três meses em que Félix tentou sustentar o insustentável perante a opinião pública, ele não pôde com persistência maior que a dele: a do povo que o elegeu. A diferença é que, com Félix, estavam alguns (ou muitos) aliados, que não foram peso suficiente para salvá-lo do precipício político. Pelo contrário. Ao correr para a mesma ponta da tábua, não só o ajudaram a afundar ao tentar defender, como parte caiu junto. 
Mesmo as pessoas mais simples, que nunca deram tanto valor aos rumos políticos, e até mesmo ao próprio voto, quiseram participar, cobrar, se inteirar da situação. Nem que fosse "pra xingar muito no Twitter" ou desabafar no Facebook ou para um vizinho. Pessoas que certamente serão mais criteriosas na próxima eleição.
Se não houvesse mobilização, seria mais do mesmo entre os casos noticiados nacionalmente. Os vereadores não sentiriam-se pressionados para instaurar uma Comissão Processante. Quantas vezes e em que situações a Câmara Municipal ficou tão lotada como nesses dias decisivos de votação? 
Em sua redoma de autoconfiança, Félix podia até ignorar a vontade popular. Os vereadores, não. Principalmente cara a cara com o eleitorado. Como em raras vezes, o povo se uniu para mostrar quem é que manda. Até porque conceito bem esquecido é o de que Legislativo serve para representar os interesses e necessidades da população e fiscalizar o Executivo para que essas sejam atendidas, e não ser conivente, ainda mais cegamente. 
Pela minha idade não tive a oportunidade de presenciar tantos acontecimentos históricos próximos (algumas Copas, talvez), portanto desconheço comemoração tão digna como a da conquista genuína do povo na Câmara. Quem já viu tamanha festa e emoção quando alguém é eleito? A cena do alcance e gosto da vitória e da participação num resultado buscado com vontade é indescritível. Quem diria, a política fez, enfim, cidadãos chorarem. De alegria! Foi o consenso em abandonar seu lado da tábua. 
Várias vezes meus colegas de redes sociais compartilharam correntes questionando por que o brasileiro não gasta com a cobrança de uma política limpa a mesma energia e tempo dedicados ao carnaval, futebol, e audiência de reality shows. Quanto da parcela da população buscou a cassação de Félix, desconheço quem possa mensurar de forma exata. Mas, quem se uniu nesse objetivo, mudou os rumos de uma cidade. E se essa ordem agisse, de fato, em problemas de outras esferas na cobrança de efetivas providências?
O povo não quis se manter calado. E isso ficou tão claro no primeiro dia de julgamento, que os populares quase ignoraram a possibilidade de a sessão ser invalidada devido às manifestações. No dia seguinte, da decisão, muitos se abstiveram de presenciar o discurso da defesa de Félix, as quase duas horas de pronunciamento do advogado José Roberto Batochio. O renomado defensor exigiu ordem e respeito, mas não perdeu a oportunidade de literalmente mandar um cidadão "limpar as orelhas" e classificar outros como retardatários do carnaval. No entanto, com essas provocações extras para se rebelar, o público se conteve. Isso devido a ação das lideranças dos diversos grupos representados, para não dar ao ilustre advogado motivos para pedir anulação da sessão. O limeirense mostrou que não basta ser unido, se não for organizado. 
Do alto de sua notória erudição profissional, os argumentos ilustrados por Batochio com diversas histórias e várias línguas não foram suficientes para derrubar a lógica de um famigerado ditado: uma andorinha só não faz verão. Tal sabedoria popular, que dificilmente entraria no culto discurso de pessoa tão gabaritada, não só se fez verdadeira como se provou em ares limeirenses. As andorinhas unidas - pela internet, pelo boca a boca ou pela legítima ânsia de justiça - não só fizeram verão, mas um verão histórico para Limeira.