Deixei minhas pegadas num dos lugares mais bonitos do mundo. Mas quem
saiu marcada fui eu. Porque não dá para se conter quando se está à
beira de um penhasco com a imensidão verde à sua frente. E acima, e
abaixo. Quando é tão perfeita a obra da natureza e o atrevimento do
homem ao ousar se colocar ali. Nós ousamos. Mesmo sem saber, no início, o
que isso significaria.
Sábado, 3 de setembro de 2016, às 7h, foi
dada a largada para a terapia mais insana e mais profunda que eu poderia
ter me submetido: subir, correndo, a Serra do Rio do Rastro, em Santa
Catarina.
Não lembro bem o que me levou a fazer a pré-inscrição
para essa corrida há um ano, assim como confirmar a inscrição quando fui
sorteada. Sim, porque o número de vagas é limitado, e liberado por
sorteio, com chamadas consecutivas quando há desistência. A doidera
começou em 2013 com prova de 42k com largada em Treviso-SC. Mas, neste
ano, foi incluída prova dos 25k, com saída em Lauro Muller-SP, ambas com
chegada no mirante da serra, a mais de 1.400 metros de altitude. Se
você acha que não há loucos o bastante, havia ainda o Desafio Samurai,
para quem tivesse currículo para encarar as duas provas (25k às 7h e 42k
às 15h). O "privilégio" é só pra quem tem marcas de 1'20 em meia
maratona e 3'20 em maratona.
Consta que (
http://chipbrasil.com.br/brlive/brlive-bsb.html?f=resultados/bsb/bsb.mizunomarathonuphill.03092016.clax),
das 496 pessoas que largaram nos 25k, 322 completaram. Foram 113
mulheres entre 177 (fiquei em 48ª colocação) e 209 entre 319 homens. O
primeiro a chegar foi Fernando Beserra, que é coletor de lixo em SP. Ele
fez o desafio Samurai, chegando em 4º dentro do tempo limite de 6h para
as duas provas. Um pouco sobre ele aqui:
http://esportes.estadao.com.br/blogs/corrida-para-todos/a-montanha-e-o-samurai/.
O
tormento dessa prova não são só os mais de 1.200 metros acumulados de
elevação (como efeito de comparação, o morro azul tem 100m!), mas o
tempo limite para garantir a medalha. Um terrorismo que considero besta
por parte da organização, mas que sempre esteve lá no regulamento. A
medalha e camiseta survivor só seriam entregues para quem chegasse até
3h30 nos 25k e em 6h nos 42k (que no fim das contas foram 44k, tirando
muita gente do páreo e resultando numa retificação, na mais grave das
trapalhadas da x3m, que DESorganizou o evento).
Daí
você pensa: qual estratégia vou usar para alcançar o topo, de
preferência dentro do tempo? Se é que posso chamar disso, minha única
estratégia foi não ver o pace no relógio, só controlar a quilometragem
para hidratação e gel. E correr até as pernas não aguentarem mais, no
ritmo que fosse possível manter naquelas horas. Era indiscutível que eu
iria andar, e muito, mas a meta era que isso ocorresse o mais tarde
possível.
Não dá para embrenhar sobre essa experiência
sem falar das tantas pessoas cujos caminhos foram cruzados graças ao
desejo de conquistar a serra. Participo de um grupo criado no Whatsapp
pra galera se ajudar, seja com informações de treinos, voos,
hospedagens, estratégias, e puxões de orelha para sair do zap e ir
treinar. E, tanto quanto a beleza da serra, o convívio com esse pessoal
não tem preço. Gente de todo lugar e com todo tipo de preparação e das
mais variadas experiências, mas todos duros na queda. Tiveram ainda os
anônimos que esbarramos serra acima, e não encontrei ninguém que não
estivesse disposto a ajudar ou animar o desconhecido ao lado - ou atrás.
O clima solidário entre os participantes desta prova foi realmente
sensacional, nunca vi algo parecido. De alguma forma, parecia que todos
estavam no mesmo nível, a luta de um era a luta do outro, sem importar
qual dor pesava mais.
A PREPARAÇÃO
Minha
ficha só começou a cair algumas semanas antes da prova, quando comecei a
conhecer o currículo recheado de alguns participantes e a questionar o
que eu ia fazer naquele lugar com experiência zero em corrida de
montanha, sem a mínima noção do que é ladeira de verdade. Nos treinos,
não mudei muito daquilo que fiz na preparação para os
42k de SP em abril,
mas precisava acostumar com as subidas. Se você pensa que Limeira tem
ladeira, sinto dizer: não tem. Haha! Revirei meus registros de treinos
no Strava pra ver qual percurso tinha a maior elevação em menor
quilometragem e, fora o morro azul, qualquer subida da cidade era uma
piada. Avenida Laranjeiras, Lauro Correa e Eduardo Peixoto foram as
principais nas quais me arrastei repetidas vezes pra acumular uma
altimetria minimamente decente, já que não dava para "acampar" no morro.
Fazia treinos de 22k para 450 metros de elevação, pra
isso tendo que subir a Lauro Correa e a Eduardo Peixoto três exaustivas
vezes consecutivas. No morro, sempre fui acompanhada do parceiro de
roubadas, meu namorado Andre Pelayo, na escolta de bike. Como já disse
antes, é muito amor pra acompanhar no morro, porque é uma subidinha
ingrata, não importa o modal, chega-se morto no topo. Passamos a subir
só o lado da cerca, e ainda sonho com o dia que não vou vacilar nele.
Daí
batia o desespero: se não consigo encarar nem o morro direito, o que
vai ser de mim na serra?? Afinal, as informações sobre a porcentagem de
inclinação eram desencontradas, a DESorganização falava em média de 59%.
Oi? Então eu nunca sabia se o treino era ideal ou não, mas sempre
estive ciente que jamais seria suficiente.
Os meses, e
principalmente semanas que antecederam a prova foram de um inferno
astral desafiador. Passei a segunda e terça anteriores com muitas dores,
e a saída, programada de moto, na quarta, foi frustrada por um dilúvio
que durou a manhã inteira e exigiu mudança total de planos. O importante
é que, depois do que pareceu um ano, agosto terminou e seguimos viagem,
numa semana inteira sem treinar, umas duas (ou mais) sem academia,
alimentação indecente e um cagaço que me acompanhou cada km nos 1000 km
de viagem até o sul. Tudo isso pra chegar na sexta à tarde em
Criciúma-SC e descobrir que os restaurantes fecham às 14h! Porque é
claro, comer porcaria é tudo o que a gente precisa em véspera de
prova... E não podia nem falar em massa após passar duas noites jantando
pizza! Ah, sono? Que sono? Com baladeiros na vizinhança do hotel e a
ansiedade a mil, foi uma noite "daquelas"... pra levantar às 4h a tempo
do café e do transporte até a largada antes de fechar a subida da serra.
A PROVA
Aqui
em SP estamos acostumados com o maior circo nas vias quando tem prova,
mas isso não aconteceu na Uphill, que lotou hotéis da redondeza. O
caminho até a largada não tinha um banner sequer orientando sobre
interdições ou mesmo sobre o local exato da largada. Dava pra passar por
Lauro Muller sem saber que um evento desses aconteceria ali. O pórtico
de largada ainda estava em montagem menos de uma hora antes de
largarmos. Depois eu soube que o circo foi montado em cima da hora
também na chegada. Foram inúmeros os furos da organização da x3m (a
cereja do bolo foi o percurso maior nos 42k, que tirou muita gente
injustamente). Não vou detalhar agora, mas a Mizuno devia ficar ligada e
contratar uma empresa que faça jus à imagem da marca, antes que seja
tarde.
Enfim, a previsão do tempo ameaçava vento e
chuva na serra. Friorenta que sou, fui preparada para qualquer coisa
abaixo de zero: touca, luvas térmicas, segunda pele, camiseta, blusa
flanelada e corta-vento. Não me arrependi do exagero, conhecendo o meu
"termômetro", o vestuário foi confortável mesmo quando o corpo
esquentou. Sou daquelas que bate os dentes com meros 17ºC.
Não
conhecia a região, mas deu pra perceber que o tempo é bastante, digamos,
dinâmico por ali. Uma hora tudo aberto, noutra, tudo fechado. Nos
primeiros kms parecia que correríamos mesmo em meio à névoa, sem comer a
serra com os olhos. Quando foi dada a largada ao som de Enter Sandman,
do Metallica, éramos algumas centenas, provavelmente a maior parte rumo
ao desconhecido. Eu, que tanto desejei conhecer a serra de moto, e
também de bike, daria risada se lá atrás alguém me dissesse que a minha
primeira vez seria com fogo nas canelas. Porque foi o que senti nos
primeiros kms, considerados "leves". Dizia a lenda que a brincadeira
ficaria séria mesmo nos últimos 10k, sobretudo nos últimos 5k. Mas na
primeira subida braba, no km 2 ou 3, já tinha gente andando. Alguns
comentários sobre o que viria também me assustaram, mas mantive o passo -
lento, mas contínuo.
Perto do que estamos (nós, paulistas)
condicionados enquanto cidade e comunidade, aquele entorno parecia nada
além do que o meio do nada. Um belo meio do nada, com algumas casinhas
encrustadas na beira da estrada, sempre com algum morador interessado e
incentivando os corredores. Não é nada parecido como o que se vê numa
São Silvestre, por exemplo. Não há multidão. Há um cidadão ou outro, que
teve a sua rotina alterada pela nossa presença, e na maioria das vezes
parecia tentar fazer com que sentíssemos bem-vindos, fosse com um aceno
ou um simples sorriso.
Quando as casas começaram a ficar raras,
animais é que davam sinal de vida, ali, do lado do guardrail. Quando
estes estavam escondidos, a vida pulsava forte das entranhas da floresta
sem fim, à frente e abaixo, sem limite a partir daquela faixa sinuosa
de concreto que era o nosso tapete vermelho. Do outro lado, paredões,
rochas, minas, flores (muitas hortênsias!). Nunca corro sem ouvir
música, mas, desta vez, abaixei o volume, não para ouvir, mas para
sentir a serra. Talvez a Marisa Monte descreva melhor este momento numa
de suas lindas canções: "atenção para escutar o que você quer saber de
verdade".
Eu sabia que a dificuldade viria, sem ter
certeza de quando. E não saberia se seria punk o suficiente pra tirar o
meu deslumbramento. Só segui o melhor conselho que poderia ter recebido:
curtir a passagem. Sorri, chorei, pensei, pesei a minha vida e outras
vidas. Me questionei, afinal, qual era o objetivo de estar ali, e pensei
em tantas lutas de gente que amo, todas com algum propósito prático,
diferente de alcançar o topo de uma serra. Pensei na minha mãe, na minha
avó falecida recentemente, e a pirambeira que essa vida foi e é para
elas, e qual a recompensa disso.
São coisas que nunca
vou poder mensurar, mas talvez eu procure, em desafios assim, autenticar
um tiquinho da força delas, para ir além da serra, para a vida e
avante. Porque embora a elevação exija muito do corpo, a mente é que
manda. Isso era o que eu pensava, e isso serviu para 42k no meio da
selva da cidade. Na serra, longe da "civilização", a cabeça tinha que
estar no lugar, mas quem mandou foi o coração. Quando se desliga de
pace, de medalha, de qualquer performance para estar sensível ao que a
serra tem a transmitir, é como se todos os outros sentidos fossem
amplificados. É uma conexão que não há como explicar. É o interior na
serra. Eu achei que isso fosse só uma frase num vídeo que fiz pra falar
que encontrei corredores de cidades vizinhas no trajeto. Mas é mais. É
isso, em essência: o nosso interior na serra.
Para quem
esperava um clima sinistro, fomos agraciados com sol e trégua da névoa.
Estava ali o nosso prêmio, ao nosso redor. Quando as curvas fechadas
começaram, ecoavam incentivos de quem estava mais acima, para aqueles
que tinham mais um cotovelo da serra a dobrar.
A
largada foi fria, aqueci pouco. Além da queimação nas canelas, meus pés
formigavam demais nos primeiros quilômetros. Mas, depois de um tempo,
meio que me condicionei à situação e esses incômodos me deixaram. É como
se o corpo tivesse acostumado a só subir, subir, subir, e mantive um
ritmo constante no avançar dos kms, descobrindo a dureza e a beleza de
cada curva. Mantive a corrida ou trote até o km 17, mais ou menos, até o
início das curvas fechadas. Naquele ponto, não lembro de ter visto
ninguém mais correr, mas invariavelmente juntava uma turminha pra dar um
gás até a próxima placa, ou até a próxima "esquina", na estratégia de
última hora de fazer cada quilômetro em até 10 minutos, para chegar
dentro das 3h30.
Passei por senhor que disse que faltava 1h10, e
ia dar. Eu só via a hora quando pegava o celular para tirar fotos, mas
tentava não me preocupar com isso. Num dos trechos, a discussão com um
pessoal foi sobre a filosofia barata de planilhas para Uphil. Hahaha,
como pode existir planilha para aquilo?? Simplesmente não existe receita
"certeira" para se preparar. Um pessoal de bike sempre aparecia para um
apoio moral, alguns explicando que subir com a magrela era tão difícil
quanto correndo, mas de modo diferente.
Nos últimos 5
kms, o jeito foi não esmorecer no passo. Eu pelo menos não tinha a menor
condição de correr ali, e minha conclusão foi que tentar isso seria tão
desgastante quanto inútil no tempo final, então o melhor era manter a
caminhada na filosofia da tartaruga: sem pressa, mas sem parada.
A
única paradinha que fiz foi no km 15 para pegar isotônico, banana e gel
(o pouco que sobrou no posto). A partir dali eram inúmeras as garrafas
jogadas no chão, cheias de líquido, num desperdício lastimável, assim
como a falta de agilidade da "produção" em repor os produtos.
Geralmente
só uso gel, água e isotônico, sem exagerar muito pra não pesar. Não
comi nem o pé de moça que levei, mas mandei ver nas bananas. Também não
usei sal, não sou acostumada e nem senti necessidade. Sou medrosa em
ousar na alimentação durante a prova em qualquer coisa que vá além do
que a carcaça está condicionada. Até agora não tive prejuízo.
Bom,
só sei que a chegada se aproximava e, diferentemente da experiência da
maratona, só consegui sorrir! Simplesmente NÃO TINHA como não sorrir
naquele lugar e naquela situação. Vai mais um clichezão: chegar ali com a
força das próprias pernas não tem preço. Não tem. No fim da serra, ao
longe, as árvores se perdiam na névoa. Após a mítica escalada, estava
finalmente batendo à porta do céu.
Até que o concreto dá lugar ao
asfalto, e uma placa avisa que estamos próximos do mirante da serra. A
paisagem muda repentinamente. Retomo o trote e vou acelerando. Naquele
ponto já havia bastante gente voltando pra buscar os quase concluintes e
animar. Com um sotaque carregado do sul, um menino me diz para não
desistir, que estou chegando, e bate na minha mão. Outros atletas fazem o
mesmo e já começo a ouvir as músicas e o locutor. A música que toca,
Highway to hell, não poderia ser mais equivocada. It's a long way to the
top if you wanna rock n' roll seria mais apropriada!
A serra acabou. Desabo no choro, é claro, poucos metros antes do pórtico de chegada. Quando o atravesso, sou outra pessoa.
CONCLUSÃO
Pouco
após a minha chegada, a névoa cobriu a serra e não consegui ver nada do
mirante. Mas fiquei com a cereja do bolo, a serra em si, km a km.
Quando descemos, de carro, e paramos em outros mirantes, eu olhava para
as ladeiras e não conseguia acreditar que tinha subido tudo aquilo,
passo a passo. Os detalhes "mensuráveis" estão no Strava:
https://www.strava.com/activities/698990292.
Uma
das conclusões possíveis é que a força da natureza também é a nossa
força. Isso eu considero também pela experiência dos colegas que
concluíram acima do tempo estipulado e daqueles que deixaram a prova, na
difícil e prudente decisão de optar pela saúde em vez de um título.
Pelo marketing da prova, quem chega é um "ninja runner". Mas esse título
está longe de exprimir o significado até mesmo da tentativa de uma
travessia em que o fora é só um pretexto para enveredar dentro.
Não
se trata de uma experiência só para conhecer ou derrubar os nossos
limites. A coisa que a corrida proporciona, e que muita gente não
entende, é o equilíbrio. Tentar colocar nossos anjos e demônios no
devido lugar, ainda que seja preciso se entregar ao caos entre eles. Às
vezes parecemos funcionar à base de metas, mas estou aprendendo que a
verdadeira razão só descobrimos depois. No fim, o queremos é ser mais
fortes. Mesmo se desmanchando perante à realeza (a serra). No fim da
curva, a serra é a vida. Sempre tem algo esperando que só vamos saber se
ousarmos avançar.