terça-feira, 6 de setembro de 2016 | By: Daíza de Carvalho

O interior na serra (do rio do rastro)

Deixei minhas pegadas num dos lugares mais bonitos do mundo. Mas quem saiu marcada fui eu. Porque não dá para se conter quando se está à beira de um penhasco com a imensidão verde à sua frente. E acima, e abaixo. Quando é tão perfeita a obra da natureza e o atrevimento do homem ao ousar se colocar ali. Nós ousamos. Mesmo sem saber, no início, o que isso significaria.
Sábado, 3 de setembro de 2016, às 7h, foi dada a largada para a terapia mais insana e mais profunda que eu poderia ter me submetido: subir, correndo, a Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina.
Não lembro bem o que me levou a fazer a pré-inscrição para essa corrida há um ano, assim como confirmar a inscrição quando fui sorteada. Sim, porque o número de vagas é limitado, e liberado por sorteio, com chamadas consecutivas quando há desistência. A doidera começou em 2013 com prova de 42k com largada em Treviso-SC. Mas, neste ano, foi incluída prova dos 25k, com saída em Lauro Muller-SP, ambas com chegada no mirante da serra, a mais de 1.400 metros de altitude. Se você acha que não há loucos o bastante, havia ainda o Desafio Samurai, para quem tivesse currículo para encarar as duas provas (25k às 7h e 42k às 15h). O "privilégio" é só pra quem tem marcas de 1'20 em meia maratona e 3'20 em maratona.
Consta que (http://chipbrasil.com.br/brlive/brlive-bsb.html?f=resultados/bsb/bsb.mizunomarathonuphill.03092016.clax), das 496 pessoas que largaram nos 25k, 322 completaram. Foram 113 mulheres entre 177 (fiquei em 48ª colocação) e 209 entre 319 homens. O primeiro a chegar foi Fernando Beserra, que é coletor de lixo em SP. Ele fez o desafio Samurai, chegando em 4º dentro do tempo limite de 6h para as duas provas. Um pouco sobre ele aqui: http://esportes.estadao.com.br/blogs/corrida-para-todos/a-montanha-e-o-samurai/.

O tormento dessa prova não são só os mais de 1.200 metros acumulados de elevação (como efeito de comparação, o morro azul tem 100m!), mas o tempo limite para garantir a medalha. Um terrorismo que considero besta por parte da organização, mas que sempre esteve lá no regulamento. A medalha e camiseta survivor só seriam entregues para quem chegasse até 3h30 nos 25k e em 6h nos 42k (que no fim das contas foram 44k, tirando muita gente do páreo e resultando numa retificação, na mais grave das trapalhadas da x3m, que DESorganizou o evento).

Daí você pensa: qual estratégia vou usar para alcançar o topo, de preferência dentro do tempo? Se é que posso chamar disso, minha única estratégia foi não ver o pace no relógio, só controlar a quilometragem para hidratação e gel. E correr até as pernas não aguentarem mais, no ritmo que fosse possível manter naquelas horas. Era indiscutível que eu iria andar, e muito, mas a meta era que isso ocorresse o mais tarde possível.

Não dá para embrenhar sobre essa experiência sem falar das tantas pessoas cujos caminhos foram cruzados graças ao desejo de conquistar a serra. Participo de um grupo criado no Whatsapp pra galera se ajudar, seja com informações de treinos, voos, hospedagens, estratégias, e puxões de orelha para sair do zap e ir treinar. E, tanto quanto a beleza da serra, o convívio com esse pessoal não tem preço. Gente de todo lugar e com todo tipo de preparação e das mais variadas experiências, mas todos duros na queda. Tiveram ainda os anônimos que esbarramos serra acima, e não encontrei ninguém que não estivesse disposto a ajudar ou animar o desconhecido ao lado - ou atrás. O clima solidário entre os participantes desta prova foi realmente sensacional, nunca vi algo parecido. De alguma forma, parecia que todos estavam no mesmo nível, a luta de um era a luta do outro, sem importar qual dor pesava mais.

A PREPARAÇÃO

Minha ficha só começou a cair algumas semanas antes da prova, quando comecei a conhecer o currículo recheado de alguns participantes e a questionar o que eu ia fazer naquele lugar com experiência zero em corrida de montanha, sem a mínima noção do que é ladeira de verdade. Nos treinos, não mudei muito daquilo que fiz na preparação para os 42k de SP em abril, mas precisava acostumar com as subidas. Se você pensa que Limeira tem ladeira, sinto dizer: não tem. Haha! Revirei meus registros de treinos no Strava pra ver qual percurso tinha a maior elevação em menor quilometragem e, fora o morro azul, qualquer subida da cidade era uma piada. Avenida Laranjeiras, Lauro Correa e Eduardo Peixoto foram as principais nas quais me arrastei repetidas vezes pra acumular uma altimetria minimamente decente, já que não dava para "acampar" no morro.

Fazia treinos de 22k para 450 metros de elevação, pra isso tendo que subir a Lauro Correa e a Eduardo Peixoto três exaustivas vezes consecutivas. No morro, sempre fui acompanhada do parceiro de roubadas, meu namorado Andre Pelayo, na escolta de bike. Como já disse antes, é muito amor pra acompanhar no morro, porque é uma subidinha ingrata, não importa o modal, chega-se morto no topo. Passamos a subir só o lado da cerca, e ainda sonho com o dia que não vou vacilar nele.

Daí batia o desespero: se não consigo encarar nem o morro direito, o que vai ser de mim na serra?? Afinal, as informações sobre a porcentagem de inclinação eram desencontradas, a DESorganização falava em média de 59%. Oi? Então eu nunca sabia se o treino era ideal ou não, mas sempre estive ciente que jamais seria suficiente.

Os meses, e principalmente semanas que antecederam a prova foram de um inferno astral desafiador. Passei a segunda e terça anteriores com muitas dores, e a saída, programada de moto, na quarta, foi frustrada por um dilúvio que durou a manhã inteira e exigiu mudança total de planos. O importante é que, depois do que pareceu um ano, agosto terminou e seguimos viagem, numa semana inteira sem treinar, umas duas (ou mais) sem academia, alimentação indecente e um cagaço que me acompanhou cada km nos 1000 km de viagem até o sul. Tudo isso pra chegar na sexta à tarde em Criciúma-SC e descobrir que os restaurantes fecham às 14h! Porque é claro, comer porcaria é tudo o que a gente precisa em véspera de prova... E não podia nem falar em massa após passar duas noites jantando pizza! Ah, sono? Que sono? Com baladeiros na vizinhança do hotel e a ansiedade a mil, foi uma noite "daquelas"... pra levantar às 4h a tempo do café e do transporte até a largada antes de fechar a subida da serra.

A PROVA

Aqui em SP estamos acostumados com o maior circo nas vias quando tem prova, mas isso não aconteceu na Uphill, que lotou hotéis da redondeza. O caminho até a largada não tinha um banner sequer orientando sobre interdições ou mesmo sobre o local exato da largada. Dava pra passar por Lauro Muller sem saber que um evento desses aconteceria ali. O pórtico de largada ainda estava em montagem menos de uma hora antes de largarmos. Depois eu soube que o circo foi montado em cima da hora também na chegada. Foram inúmeros os furos da organização da x3m (a cereja do bolo foi o percurso maior nos 42k, que tirou muita gente injustamente). Não vou detalhar agora, mas a Mizuno devia ficar ligada e contratar uma empresa que faça jus à imagem da marca, antes que seja tarde.

Enfim, a previsão do tempo ameaçava vento e chuva na serra. Friorenta que sou, fui preparada para qualquer coisa abaixo de zero: touca, luvas térmicas, segunda pele, camiseta, blusa flanelada e corta-vento. Não me arrependi do exagero, conhecendo o meu "termômetro", o vestuário foi confortável mesmo quando o corpo esquentou. Sou daquelas que bate os dentes com meros 17ºC.
Não conhecia a região, mas deu pra perceber que o tempo é bastante, digamos, dinâmico por ali. Uma hora tudo aberto, noutra, tudo fechado. Nos primeiros kms parecia que correríamos mesmo em meio à névoa, sem comer a serra com os olhos. Quando foi dada a largada ao som de Enter Sandman, do Metallica, éramos algumas centenas, provavelmente a maior parte rumo ao desconhecido. Eu, que tanto desejei conhecer a serra de moto, e também de bike, daria risada se lá atrás alguém me dissesse que a minha primeira vez seria com fogo nas canelas. Porque foi o que senti nos primeiros kms, considerados "leves". Dizia a lenda que a brincadeira ficaria séria mesmo nos últimos 10k, sobretudo nos últimos 5k. Mas na primeira subida braba, no km 2 ou 3, já tinha gente andando. Alguns comentários sobre o que viria também me assustaram, mas mantive o passo - lento, mas contínuo.
Perto do que estamos (nós, paulistas) condicionados enquanto cidade e comunidade, aquele entorno parecia nada além do que o meio do nada. Um belo meio do nada, com algumas casinhas encrustadas na beira da estrada, sempre com algum morador interessado e incentivando os corredores. Não é nada parecido como o que se vê numa São Silvestre, por exemplo. Não há multidão. Há um cidadão ou outro, que teve a sua rotina alterada pela nossa presença, e na maioria das vezes parecia tentar fazer com que sentíssemos bem-vindos, fosse com um aceno ou um simples sorriso.
Quando as casas começaram a ficar raras, animais é que davam sinal de vida, ali, do lado do guardrail. Quando estes estavam escondidos, a vida pulsava forte das entranhas da floresta sem fim, à frente e abaixo, sem limite a partir daquela faixa sinuosa de concreto que era o nosso tapete vermelho. Do outro lado, paredões, rochas, minas, flores (muitas hortênsias!). Nunca corro sem ouvir música, mas, desta vez, abaixei o volume, não para ouvir, mas para sentir a serra. Talvez a Marisa Monte descreva melhor este momento numa de suas lindas canções: "atenção para escutar o que você quer saber de verdade".

Eu sabia que a dificuldade viria, sem ter certeza de quando. E não saberia se seria punk o suficiente pra tirar o meu deslumbramento. Só segui o melhor conselho que poderia ter recebido: curtir a passagem. Sorri, chorei, pensei, pesei a minha vida e outras vidas. Me questionei, afinal, qual era o objetivo de estar ali, e pensei em tantas lutas de gente que amo, todas com algum propósito prático, diferente de alcançar o topo de uma serra. Pensei na minha mãe, na minha avó falecida recentemente, e a pirambeira que essa vida foi e é para elas, e qual a recompensa disso.

São coisas que nunca vou poder mensurar, mas talvez eu procure, em desafios assim, autenticar um tiquinho da força delas, para ir além da serra, para a vida e avante. Porque embora a elevação exija muito do corpo, a mente é que manda. Isso era o que eu pensava, e isso serviu para 42k no meio da selva da cidade. Na serra, longe da "civilização", a cabeça tinha que estar no lugar, mas quem mandou foi o coração. Quando se desliga de pace, de medalha, de qualquer performance para estar sensível ao que a serra tem a transmitir, é como se todos os outros sentidos fossem amplificados. É uma conexão que não há como explicar. É o interior na serra. Eu achei que isso fosse só uma frase num vídeo que fiz pra falar que encontrei corredores de cidades vizinhas no trajeto. Mas é mais. É isso, em essência: o nosso interior na serra.

Para quem esperava um clima sinistro, fomos agraciados com sol e trégua da névoa. Estava ali o nosso prêmio, ao nosso redor. Quando as curvas fechadas começaram, ecoavam incentivos de quem estava mais acima, para aqueles que tinham mais um cotovelo da serra a dobrar.

A largada foi fria, aqueci pouco. Além da queimação nas canelas, meus pés formigavam demais nos primeiros quilômetros. Mas, depois de um tempo, meio que me condicionei à situação e esses incômodos me deixaram. É como se o corpo tivesse acostumado a só subir, subir, subir, e mantive um ritmo constante no avançar dos kms, descobrindo a dureza e a beleza de cada curva. Mantive a corrida ou trote até o km 17, mais ou menos, até o início das curvas fechadas. Naquele ponto, não lembro de ter visto ninguém mais correr, mas invariavelmente juntava uma turminha pra dar um gás até a próxima placa, ou até a próxima "esquina", na estratégia de última hora de fazer cada quilômetro em até 10 minutos, para chegar dentro das 3h30.
Passei por senhor que disse que faltava 1h10, e ia dar. Eu só via a hora quando pegava o celular para tirar fotos, mas tentava não me preocupar com isso. Num dos trechos, a discussão com um pessoal foi sobre a filosofia barata de planilhas para Uphil. Hahaha, como pode existir planilha para aquilo?? Simplesmente não existe receita "certeira" para se preparar. Um pessoal de bike sempre aparecia para um apoio moral, alguns explicando que subir com a magrela era tão difícil quanto correndo, mas de modo diferente.

Nos últimos 5 kms, o jeito foi não esmorecer no passo. Eu pelo menos não tinha a menor condição de correr ali, e minha conclusão foi que tentar isso seria tão desgastante quanto inútil no tempo final, então o melhor era manter a caminhada na filosofia da tartaruga: sem pressa, mas sem parada.

A única paradinha que fiz foi no km 15 para pegar isotônico, banana e gel (o pouco que sobrou no posto). A partir dali eram inúmeras as garrafas jogadas no chão, cheias de líquido, num desperdício lastimável, assim como a falta de agilidade da "produção" em repor os produtos.
Geralmente só uso gel, água e isotônico, sem exagerar muito pra não pesar. Não comi nem o pé de moça que levei, mas mandei ver nas bananas. Também não usei sal, não sou acostumada e nem senti necessidade. Sou medrosa em ousar na alimentação durante a prova em qualquer coisa que vá além do que a carcaça está condicionada. Até agora não tive prejuízo.

Bom, só sei que a chegada se aproximava e, diferentemente da experiência da maratona, só consegui sorrir! Simplesmente NÃO TINHA como não sorrir naquele lugar e naquela situação. Vai mais um clichezão: chegar ali com a força das próprias pernas não tem preço. Não tem. No fim da serra, ao longe, as árvores se perdiam na névoa. Após a mítica escalada, estava finalmente batendo à porta do céu.
Até que o concreto dá lugar ao asfalto, e uma placa avisa que estamos próximos do mirante da serra. A paisagem muda repentinamente. Retomo o trote e vou acelerando. Naquele ponto já havia bastante gente voltando pra buscar os quase concluintes e animar. Com um sotaque carregado do sul, um menino me diz para não desistir, que estou chegando, e bate na minha mão. Outros atletas fazem o mesmo e já começo a ouvir as músicas e o locutor. A música que toca, Highway to hell, não poderia ser mais equivocada. It's a long way to the top if you wanna rock n' roll seria mais apropriada!
A serra acabou. Desabo no choro, é claro, poucos metros antes do pórtico de chegada. Quando o atravesso, sou outra pessoa.

CONCLUSÃO

Pouco após a minha chegada, a névoa cobriu a serra e não consegui ver nada do mirante. Mas fiquei com a cereja do bolo, a serra em si, km a km. Quando descemos, de carro, e paramos em outros mirantes, eu olhava para as ladeiras e não conseguia acreditar que tinha subido tudo aquilo, passo a passo. Os detalhes "mensuráveis" estão no Strava: https://www.strava.com/activities/698990292.

Uma das conclusões possíveis é que a força da natureza também é a nossa força. Isso eu considero também pela experiência dos colegas que concluíram acima do tempo estipulado e daqueles que deixaram a prova, na difícil e prudente decisão de optar pela saúde em vez de um título. Pelo marketing da prova, quem chega é um "ninja runner". Mas esse título está longe de exprimir o significado até mesmo da tentativa de uma travessia em que o fora é só um pretexto para enveredar dentro.

Não se trata de uma experiência só para conhecer ou derrubar os nossos limites. A coisa que a corrida proporciona, e que muita gente não entende, é o equilíbrio. Tentar colocar nossos anjos e demônios no devido lugar, ainda que seja preciso se entregar ao caos entre eles. Às vezes parecemos funcionar à base de metas, mas estou aprendendo que a verdadeira razão só descobrimos depois. No fim, o queremos é ser mais fortes. Mesmo se desmanchando perante à realeza (a serra). No fim da curva, a serra é a vida. Sempre tem algo esperando que só vamos saber se ousarmos avançar.