domingo, 26 de junho de 2011 | By: Daíza de Carvalho

Depois de viverem nas "regras das ruas", homens buscam mudanças

Daíza Lacerda


"Encontramos morando na rua médicos, dentistas, advogados. A maioria deixa o lar por questões familiares, como traição. Quando estão na rua, os vícios como bebidas ou drogas são consequência". O panorama é explicado por William Semprebom, 22, um dos fundadores da Missão Anjos da Noite, que busca resgatar moradores de rua para o convívio social, como a Gazeta mostrou no último domingo.
A entrega ao vício é praticamente certa para a pessoa que convive com as ameaças da rua. "Em quatro anos de missão, devemos ter encontrado uns três que não tinham vício algum. No mais, o dinheiro que conseguem é para comprar drogas ou cachaça", diz.
Entre os químicos, o mais preocupante é o crack. Desde que a Comunidade São Judas Tadeu, da Paróquia Santa Isabel, serve como abrigo das pessoas que aceitam nova chance para mudar de vida, além de tentar tirar moradores do vício, a missão tenta manter os abrigados imunes à ameaça que vem de fora, já que as refeições são abertas a quem quiser. "Muitos chegam no café ou almoço já sob efeito de alguma droga, ou mesmo com pó no nariz", diz Semprebom, sobre a tentação que ameaça a recuperação dos abrigados. Muitos acompanham apenas a primeira refeição do dia, suficiente como sustento para a ingestão de drogas.
Às sextas-feiras o grupo faz evangelização nos pontos onde há consumo, mas os usuários resistem aos aconselhamentos. Outro problema é que os que estão há muito tempo na rua não abrem mão da "liberdade". "Não querem sair da rua porque não se limitam a regras, não deixam que o mundo as imponha a eles. No entanto, a rua é onde há mais regras".

LUTA CONTRA O VÍCIO
Além do desafio de se manter longe do vício, o caminho da ressocialização inclui regularizar documentos e tentar encontrar emprego. Em comum entre eles, a dependência química que tentam deixar no passado e a expectativa de novo caminho para o futuro.
Rodrigo Salcedo, 33, tem família em Piracicaba, e estava olhando carros quando foi abordado pela missão. "Vi oportunidade de mudança. Abusei do álcool e a família não quis aceitar. Quero reconstruir minha vida e andar com as próprias pernas. Recuperar a autoestima e me manter longe dos vícios", garante ele, que já esteve em clínicas e não se adaptou. "Aqui temos o acesso livre. Podemos sair e voltar. Cabe a nós controlar e ter consciência".
João Carlos Moreira Júnior, 35, havia acabado de voltar à casa depois de uma recaída com as bebidas. "Fui muito cabeçudo. Estava aqui há dois meses e saí. Fiquei seis dias fora. Mas a rua não compensa para ninguém. É um dia a dia duro", diz ele, que vivia no Largo São Sebastião, na Boa Vista e também perto da Santa Casa, para onde foi após brigas com a família. "Para não discutir mais, fui para a rua pegar recicláveis. Também viajava a pé", diz ele, que tem um filho que o incentiva a melhorar.
Cleuto GIlmar Valério, 40, se denomina como o cozinheiro reserva da casa. "Eu bebia muito e nem sei como comprei a passagem e cheguei até aqui", diz ele, cuja família é de Araraquara. Da rodoviária, foi encaminhado à comunidade, e hoje vê de forma positiva o "branco" que teve e o trouxe até aqui, onde encontrou seu irmão. "Chegar aqui foi uma oportunidade boa para conversar com Deus, não tenho por que sair. Quero ficar e ajudar", diz ele, que estava prestes a ser avô e voltaria para sua antiga cidade para acompanhar o parto da filha.

ESCOLHAS
Rafael Firmino da Silva tem 23 anos, é o caçula da casa. Aos 18 anos ele saiu de sua casa, em Mogi Mirim, para trabalhar no Mato Grosso do Sul. Optou ir para tão longe para fugir das drogas e, assim, garantir paz à sua mãe, enquanto trabalhava com carvoaria. Depois de dois anos no outro Estado, voltou a se envolver com tóxicos. "Não soube dar valor à família, mas hoje minha cabeça é diferente", diz ele, que voltou por vontade da mãe e foi encaminhado à missão por uma assistente social.
Há mais de três meses na casa, Silva é referenciado como  o artista do grupo, mesmo tendo perdido a visão de um olho aos seis anos, ao brincar com um arame e acertar um dos olhos. Ele divide o tempo entre o emprego e as oficinas desenvolvidas. Faz grafite, caricatura e pintura em tela, além dos artesantatos que garantem renda para a manutenção da casa. "Na rua, nos humilhamos muito por migalhas. Se puder aconselhar, diria para os jovens darem valor à família que têm e buscar a Deus, que tem muito a oferecer. Entrar no caminho da droga é fácil, difícil é sair. Causa depressão e consequências com a saúde. Passamos a enriquecer traficantes e bares. Para ser feliz não precisamos disso", prega ele, que agora quer fazer diferença por meio de estudo e trabalho.
Marcos Caldas, 38, vivia em Ribeirão Preto e foi pastor de igreja até enfrentar conflitos entre família e igreja. "Fui esgotando e abandonei tudo. Serviço, casa, igreja", conta ele, que já havia sido missionário em Limeira. Ao vir pra cá e morar na rua, teve contato com drogas, bebidas e violência. "Ia comprar pinga quando o Beto [Albert Henrique Neves, que coordena a missão], perguntou se eu queria ser ajudado. Se quisesse, aquela era hora hora: era só deixar de comprar bebida".
Ele justifica o uso do álcool para ter coragem de ficar na rua. "É terrível ter de mendingar, pedir dinheiro. Andar sujo, barbudo, cabeludo", diz ele, sobre a situação que chegou ao abrigo, há mais de quatro meses. "Hoje me sinto reintegrado, com oportunidades", diz ele, que ajuda na organização dos trabalhos do abrigo. "Foi um voto de confiança. Se alguém quer ajuda para mudar de vida, estamos aqui. Mas se for para passar o tempo e engordar, não é o lugar. Aqui temos normas e disciplina e é preciso estar de acordo. Nossa missão é agregar".
Diante disso, muitos não ficaram no abrigo. "As pessoas não têm a mesma estrutura. Mas sei que, se queremos mudar, encontramos braços. Mas também um tomate podre pode estragar uma caixa inteira. Drogas não são solução. Só destruição".




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