terça-feira, 10 de maio de 2016 | By: Daíza de Carvalho

A imoralidade nossa de cada dia

COLUNA RELEITURA - 10/05/2016

A imoralidade nossa de cada dia

Daíza Lacerda

Confesso que assisto versão pirata de filmes. Principalmente aqueles lançamentos que passam longe dos tantos cinemas de Limeira, que oferecem apenas mais horários dos mesmos blockbusters. Nenhum ainda teve coragem de adotar uma linha mais alternativa, sem deixar os lançamentos de lado. Sei que não justifica a prática, e também não faço ideia do quanto eu leso o bolso de produtores e astros fazendo isso. Não gero essas cópias falsas, mas, se estão disponíveis, assisto. Esta é a minha imoralidade consciente. Qual é a sua?
As práticas imorais tidas como "inofensivas" são tão intrínsecas na vida do brasileiro, que muitos devem considerá-las legítimas. Tipo usar vaga especial, em estacionamentos e veículos públicos. Furar fila descaradamente. Usar carteirinha falsa para garantir pagamento de meia entrada em eventos. Comprar de lojas cujos produtos são fruto de trabalho análogo ao escravo. Dificultar a passagem de ambulâncias no trânsito. Falsificar ou usar indevidamente atestados médicos.
Atestar que tem uma doença crônica quando não tem, só para garantir a imunização contra a gripe, é uma das coisas que nos faz entender porque o nosso país é como é. Em meio ao furacão político, cidadãos bradam pela caça aos corruptos. Sabe-se lá quantos deles tirando uma vacina de alguém que realmente precisa, por exemplo.
A situação foi trazida pela jornalista Renata Reis na edição de sábado da Gazeta, e coloca em cheque não só a conduta de pacientes como a de médicos. Pode não ser um crime. Pode não desrespeitar nenhuma lei. Mas é certo? Ano após ano, as vacinas sobraram nos postos. Mesmo com a oportunidade, ninguém procurou se imunizar. E uma vertente nova da gripe tampouco mudou os hábitos, tanto de higienização quanto de educação. Afinal, mesmo sem H1N1, nunca foi bonito espirrar na cara dos outros.
Mas, no país das vantagens, é mais fácil "dar um jeitinho" de conseguir a vacina do que tomar cuidado para evitar o vírus. Deveríamos estar aliviados por estar fora do grupo prioritário, supondo-se ter uma imunidade melhor contra o que de pior a doença pode causar. Mas o brasileiro tem uma cultura de remediar doenças, e não de preveni-las (com a vacina da boa alimentação e atividade física). Daí bate o desespero e a cara de pau.
Exceto pelo que mexe no bolso (alguém relacionou o preço exorbitante de alguns ingressos com a explosão da meia entrada?), não sabemos mensurar o impacto das nossas imoralidades cotidianas. Mas não acredito que haja consciência impune quando o que está em jogo são vidas muito mais vulneráveis do que a nossa. Não acredito que haja justificativa plausível o bastante para atrasar uma ambulância ou tirar a vacina de alguém que pode, de verdade, precisar dela para continuar vivendo.
É sempre um risco generalizar, mas são situações que levam a crer que Renato Russo estava certo, em essência. Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação.

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