domingo, 25 de setembro de 2011 | By: Daíza de Carvalho

Dalai Lama: o pacificador fala aos brasileiros

Daíza Lacerda
Especial para o Jornal da Mulher

Nada de sermão ou de pregação, nem mesmo para defesa de religião. Muito pelo contrário. Com a calma e sutileza de quem está sentado tomando um cafezinho (ainda que preferisse ficar de pé), Dalai Lama conversou no sábado, dia 17, com algumas milhares de pessoas no Anhembi, em São Paulo, em sua quarta passagem pelo Brasil. Com riso de sobra e sem espaço para o siso, o jeito cativante de Tenzin Gyatso, líder espiritual do Tibete, provocou as melhores reações para quem foi ouvi-lo falar sobre convivência responsável e solidária.

GUERRA E PAZ
O Nobel da Paz discursou sobre os efeitos das guerras e por quê temos que, de fato, deixar para trás o passado no qual o que valia era "nós aqui de um lado e o outro", e não "todos nós juntos". "A economia é global, além das questões ecológicas. O interesse de um país está ligado aos demais, assim como os continentes. Mesmo São Paulo não se desenvolve sem recursos de outros locais. É preciso a compreensão de unidade". As diferenças de nacionalidade ou de crença religiosa existem, mas são secundárias, salientou. "A importância da classe social cria discriminação e infelicidade, na medida em que somos todos iguais enquanto seres humanos".
Ele defendeu o uso das experiências do passado como aprendizado para conduzir o futuro de forma diferente, com soluções por meio do diálogo, e não pela violência. "No passado a derrota do inimigo representava a nossa vitória. Mas a destruição do vizinho representa a nossa própria destruição". Como sugestão, o Nobel da Paz disse que banir o arsenal nuclear seria um bom começo. Mas pontuou o que, de fato, temos a ver com isso. "Nós também temos uma tarefa a cumprir, que é o desarmamento interno. Livrar-nos da raiva, do medo, do ódio, da ganância e violência. Temos de prestar mais atenção ao nosso mundo interno, para o desarmamamento externo acontecer".
Dalai Lama deu uma incumbência a parte expressiva dos espectadores. "Vejo que há muitos jovens aqui. Faço parte da geração do século passado, que já está se despedindo, mas os que estão entre 20 e 30 anos é que farão o século 21. A nova geração precisa ter responsabilidade para moldar o mundo, criar um mundo pacífico. Para isso é preciso visão, mas não basta olhar o que está à volta. É preciso de uma perspectiva que abarque o mundo todo, de forma global". A receita? "A educação é um instrumento que pode ser usado de forma construtiva e destrutiva, dependendo da orientação. Mas é preciso cultivar o calor no coração, para benefício próprio. Para uma vida mais feliz, com autoconfiança e paz interior. É importante prestar atenção nos valores internos". 

PARA TODOS OS CREDOS (OU NENHUM) 
Se os valores internos são o que impulsionam o ser humano, inicialmente dois caminhos são propostos. Um é o da religião teísta "um instrumento poderoso para lidar com o egoísmo e arrogância, pois submete-se ao seu criador, Deus, que é compaixão infinita e amor, quando segue-se de forma sincera a fé". 
O segundo caminho são religiões não teístas, como o hinduísmo antigo, que seguem um sistema filosófico sem a ideia de um criador, a exemplo do próprio budismo. "Bons atos de felicidade ao semelhante retornam como benefício próprio. Se causar sofrimento, destruição, isso trará consequência negativa para si".
Mas, se as "opções" não parecem agradar... "Somos sete bilhões de seres humanos e uma grande parcela sem interesse sério pela fé religiosa", considerou. "A fé cabe a cada um decidir, mas os não crentes também fazem parte da humanidade, para quem a paz interior e alegria também são valores importantes. A base de uma vida feliz está em não negligenciar valores internos. A religião promove esses valores, mas quem não tem interesse religioso também os desenvolve". O líder defendeu ainda um legado de secularismo para cultivo dos bons valores morais, exceto pelo "secularismo comunista" da China, que ocupa o Tibete. 

CORRUPÇÃO E MISÉRIA
"Em todo o mundo, assim como em São Paulo, erguem-se prédios cada vez mais e mais altos. Mas as perspectivas e valores internos estão declinando mais e mais. Com isso acontecem as divisões e injustiças sociais, acontecimentos que denotam a falta de valores morais e tradições éticas, em nível internacional, evidenciada pela conduta autoritária de países mais poderosos. E no Brasil? Como é essa divisão no Brasil? Pequena? Grande?". Grande, muito grande, com direito a abrir os dois braços para exprimir o quanto, foi a reação da plateia. "E vocês estão contentes com essa divisão?", perguntou, recebendo a negativa em uníssono.
A corrupção também foi abordada pelo líder tibetano. "Esta é uma nova forma de câncer que ataca a humanidade e se alastra pelo mundo. Se olharmos para a situação da Índia, lá existe um governo plenamente democrático, poder judiciário independente e liberdade de imprensa. Diferente da China. Os governantes são responsáveis pela população".

PACIÊNCIA E TOLERÂNCIA
Indagado sobre como cultivar a paciência numa sociedade de urgências, Dalai Lama propôs atitude que se mostra como um desafio. "O mundo é de ambição, e quando não se alcança os planos, vêm a raiva e frustração. É preciso enxergar a realidade de forma objetiva, examinar a meta. A realidade tem muitas facetas e se olhar apenas por um prisma sem enxergar o todo, não se consegue chegar ao que quer. A paciência é um valor importante para cultivar e isso acontece apenas nas situações de adversidade. Quando vemos o outro como inimigo, como aquele que nos perturba a vida, temos de apreciá-lo, pois é alguém que nos dá a chance de cultivar a paciência. Não é preciso se submeter, mas se esforçar. Em quantas vezes fracassar, novamente se coloque de pé nos obstáculos. Paciência é fundamental para fortalecer os valores internos".
Tolerância é não cultivar a raiva em relação às pessoas que querem nos prejudicar. "Não quer dizer que devemos nos submeter à ação e à pessoa que a pratica. Ser tolerante é não ter ódio ou perder o respeito pelo malfeitor, mas não precisa aceitar a ação ou se opor ao que acredita. Deus não perdoa o pecado, mas perdoa o pecador. Não se deve curvar à ação negativa, mas no sentido de se preocupar com quem faz o mal. Se o malfeitor é livre para a maldade e vê sucesso nela, fica propenso a repetir, o que o levará ao sofrimento". 
Na abordagem do "mercado da espiritualidade" existente hoje, Dalai Lama deu um exemplo simples para orientação. "Quando se vai à quitanda comprar frutas ou verduras, você presta atenção, examina, pede opiniões. A espiritualidade é muito séria, então é preciso investigar e examinar de forma completa antes de se engajar. É uma tarefa que leva anos. No fim, chegará à convicção, ao sistema que se adeque". 
Para isso, ele aconselha a leitura de livros, mais até do que a consulta de pessoas. No entanto, contrariando os eventos com participação de celebridades e autoridades, quem saiu do Anhembi após duas horas de risos, aplausos e reflexões com o 14º Dalai Lama, não encontrou nenhum estande para comprar livros ou souvenirs daquele reconhecido como um dos mestres da arte da paz. A lembrança, levada na consciência e coração, pode sim se tornar presente. Por meio de atos. Ainda que seja no futuro.



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