Missão que tira moradores das ruas tem jovens que veem na religiosidade uma vocação
Aos 72 anos, seu João mostra habilidade para montar um barco com palitos de fósforo e papel. Ele diz que aprendeu a arte quando passou um tempo num seminário em Santa Catarina. Ele, que é limeirense, mas andou por vários Estados, está há um mês na comunidade São Judas Tadeu, atendido pela missão Anjos da Noite. "Fiquei um tempo nocauteado. Mas estou melhorando", diz ele, que é o mais velho da casa.
A Gazeta mostrou nas duas últimas semanas a situação de moradores de rua e a iniciativa da missão, que busca dar alternativas aos que não têm casa, proporcionando refeições, local para ficar e regularização de documentos, para encaminhamento ao trabalho. O projeto é apoiado pela Paróquia Santa Isabel. "Quando os encontramos, eles estão perdidos, e para conseguirmos aproximação, leva um tempo. Sentem-se muito machucados, têm falta de cuidado humano", diz o padre Valdinei Antônio da Silva, da paróquia.
VOCAÇÃO
Deixar o emprego para se dedicar a uma causa não foi atitude tomada apenas por Albert Henrique Neves, o Betinho, que coordena os trabalhos, mas também por William Semprebom, 22, um dos fundadores da missão. Aos 20 anos, Anderson Euzébio Bonfim é outro voluntário que até tentou ficar longe do projeto, mas a vocação em ajudar venceu.
Há quatro anos ele estava indeciso sobre qual caminho seguir, enquanto a pastoral de assistência aos moradores de rua se estruturava. "Aprendemos como agir com ele, fazer a abordagem de maneira certa. O principal é que somos iguais, sem jamais colocá-los abaixo ou nos acharmos superiores", declara Bonfim.
Ele começou a trabalhar e passou por vários trabalhos até que, em um retiro vocacional percebeu que deveria mesmo se dedicar à vida missionária. "Tive bons empregos, mas não estava feliz", revela.
Ele elege como a maior dificuldade da missão o trabalho com os vícios. "Continuar a luta dentro da igreja é possível, mas e lá fora? Dos que encontramos, o que bebia menos ingeria três corotes", exemplifica.
A dedicação causou mudança em todos no trabalho de tirar as pessoas da rua e recolocá-las na sociedade, com recuperação física e espiritual. "Tudo acontece aos poucos, enquanto o corpo se acostuma sem as drogas ou a bebida. Os que querem mudança continuam conosco".
VOLUNTÁRIOS
O cabo Francisco Alves tem colaborado com a recuperação do grupo de abrigados, por meio de palestras abordando o lado psicanalítico. "Tentamos mostrar os valores que devem resgatar, e que perderam por decepções na infância ou na juventude. Passaram pela missão pessoas que estudaram bastante, mas que tiveram desilusões amorosas e abandonaram tudo e posteriormente se renderam ao álcool ou drogas", explica.
São valores novos, mas que já está dentro de cada um, acredita Alves, e que os ajudarão a conviver em uma nova sociedade. "O álcool e as drogas se tornaram fuga de um problema que não souberam resolver. Mas percebemos a vontade de muitos em ser resgatados".
Enquanto muitos perdem a referência no dia a dia da rua, nem todos tiveram oportunidade anterior de mudança e, na acolhida da missão, buscam a religiosidade. "Precisamos chamar atenção da sociedade que nas ruas há pessoas muito boas, mas que perderam o sentido da vida. Estão embaixo das pontes, mas são dignas", atesta.
Enquanto muitos ainda mostram resistência à ressocialização, outros já voltaram aos seus lares. Quem resiste passou por problemas familiares como traição, e, ao perder tudo ao ex-cônjuge temem criar novos bens e perdê-los novamente. "É preciso mostrar uma direção e, principalmente, enaltecer o trabalho da missão. Quantos jovens abrem mão de coisas como o emprego para se dedicar a quem sequer conhece?".
Missão cresce, mas precisa de apoio para ampliar atendimento
Padre Valdinei ressalta que o bonito é o que inspira a missão, ao revigorar a solidariedade. "A atualidade é de grandes desafios e nela encontramos campo para a missão, ao cuidar dos que mais precisam, ir ao encontro dos que sofrem mais. Neste trabalho, estende-se a mão para ajudar a cuidar dessa ferida social".
Ele avalia o trabalho como ainda pequeno, mas com um reflexo importante. "Cada vida que conseguimos ajudar é de valor incalculável. Vemos que muitas pessoas que chegam a essa situação têm formação acadêmica, bastante estudo".
O condicionamento à rua e suas ameaças e necessidades leva muitas pessoas a perderem a representação do "normal". O padre conta o caso de uma pessoa abordada que não aceitou comida de uma das pastorais da missão. O morador de rua dizia que, enquanto houvesse lixo em Limeira, não passaria fome. O último alimento que havia recebido de alguém era um sanduíche, entregue após o "doador" cuspir no lanche, contou o homem.
Depois do passo inicial da adaptação para dar prosseguimento ao projeto, que começou há quatro anos com a entrega de comida nas ruas, o que continua sendo feito aos domingos à noite, até o acolhimento, que teve início neste ano, a missão vem crescendo, e as necessidades também. "A sociedade civil e algumas empresas têm nos ajudado, mas o nosso grande desafio é um local adequado, já que o atual é adaptado", lembra o padre. Apesar de o acolhimento estar praticamente no limite do imóvel da comunidade São Judas Tadeu, que fica na Vista Alegre, ele garante dá-se um jeito, mas o apoio é certo. No entanto, a iniciativa precisa de mais ajuda, tanto da sociedade civil quanto das empresas, inclusive as grandes. "Agradecemos aos voluntários e todos que nos apóiam. Toda ajuda é bem-vinda para que possamos dar continuidade a proposta do trabalho". (DL)
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