domingo, 10 de março de 2013 | By: Daíza de Carvalho

Manipulação exemplar (ou: a imprensa em "Garota exemplar")

Daíza Lacerda

Com muita chateação (e um tantinho de raiva), terminei de ler "Garota exemplar", promessa de best-seller de Gillian Flynn, recém-lançado no Brasil. Há quem diga que pode bater "50 Tons", o que eu adoraria, pois o lançamento é um thriller inteligente. A propósito, não li 50 Tons e não pretendo ler.

Na sexta-feira, recebi um e-mail marketing com o lançamento em e-book. Dei uma olhada num vídeo da autora falando sobre a obra e minutos depois estava lendo os primeiros parágrafos no tablet. O resultado é que passei o final de semana envolvida no cabo-de-guerra psicológico (e psicótico) de Nick Dunne e Amy Elliott - ou Amy Exemplar, a personagem perfeita retratada nos livros infantis dos pais dela, projetada na menina de carne e osso.
O mote da história são os relacionamentos, e como os caminhos escolhidas por Nick e Amy os levam ao dia do quinto aniversário de casamento de ambos, data em que ela desaparece. Ambos podem ser os mocinhos e bandidos da história, pois cada um dá a sua explicação dos fatos com a própria voz. Amy, a princípio, pelos seus registros em diário.
Enquanto indícios levam o marido a tornar-se o principal suspeito do sumiço e suposta morte da esposa, ela conta pelo seu diário como a coisa desanda nos últimos anos de casamento, depois do conto de fadas do encontro e namoro. O rumo da história muda lá pela metade das cerca de 450 páginas virtuais. O posicionamento ora do marido, ora da esposa, leva o leitor a escolher um lado. Uma manipulação exemplar, que permeia cada um desses e dos demais personagens. Dá para confiar e duvidar de todos.
A decisão de ter ou não filhos, como lidar com o desemprego de ambos e a mudança de Nova York para o Missouri, os pais doentes de Nick (que tem uma irmã gêmea) e os mimos da filha única e rica Amy. Muitos casais se colocarão nas situações traçadas pela autora, em questões cotidianas e existenciais. Sobre as concessões de um casamento, a hora de parar, a hora de voltar, a hora de deixar e de se deixar - e quando não é possível fazer nada isso.

OPINIÃO PÚBLICA
São teias muito bem amarradas pelo mistério do sumiço de Amy e as evidências que levam à suposta culpa de Nick, que, para ajudar, tem uma amante. Um jogo da moralidade contra a verdade. No qual o juiz é a imprensa, pronta a julgar a partir da mais leve das suspeitas.
Como jornalista, me coloquei um pouco dentro das paredes da casa dos Dunne, num condomínio decadente, com um Nick encurralado com provas que não conseguia corroborar e ilhado pela imprensa do lado de fora, com o constante questionamento se havia matado Amy. Eu também odiaria os repórteres, mesmo sendo uma - e ele também.
Nick é um jornalista que convive com o fracasso de ter sido demitido de uma revista em NY e volta para a cidade natal às margens do Rio Mississipi (contra a vontade de Amy, uma autêntica cidadã nova-iorquina, mas também desempregada). Com o dinheiro da esposa, abre um bar com a irmã, o que o faz se sentir menos derrotado, apesar da dependência financeira da mulher.
Ele terá, no entanto, que expor essa e muitas outras fraquezas de sua vida publicamente, para tentar trazer a esposa de volta e provar que não é assassino. Os personagens dão à imprensa o que ela quer: elementos de escândalo. Amy estava grávida. Nick tinha uma amante. Definitivamente, ninguém queria ser esse cara. Tampouco alguém estava disposto a acreditar na versão dele.
A mídia já o condenara antecipadamente como culpado, embora a lei "de verdade" o mantivesse em liberdade. Numa tentativa de virada com a ajuda do "advogado das estrelas", figura conhecida pela clientela de maridos suspeitos, usaria a própria imprensa a seu favor para manipular a opinião pública e mostrar o seu lado bom-moço-arrependido-que-quer-a-esposa-de-volta. Jogaria o jogo. Teria que ser tão bom quanto Amy em manipulação. Afinal, ela é exemplar.
Os fatos podem não ter apenas dois lados, mas facetas intermináveis e jornalistas ficam como verdadeiras marionetes atrás de elementos para contar uma história. Marionetes como as que compõem o presente de casamento de Nick: que dão um recado de como ele é manipulável.
O fato é que "o fato", de verdade, não chega aos canais ou aos jornais. A vítima fica com o ônus e o vilão da história, com o bônus. Sem sequer uma notinha de rodapé ou um flash de 10 segundos na programação. Justiça zero e fim do show. Acho que foi o que irritou, como um chute no "ego jornalístico": o quanto nos esforçamos a chegar o mais próximo de uma verdade que pode nunca ser conhecida do público, e nem mesmo descoberta pela polícia.
Guardado o limite de spoiler alert, me limito a dizer que a minha primeira reação com o final foi de estar certa de que a história terá continuação. De imediato, era inconcebível que a trama terminasse como terminou. Mas, refletindo, a conclusão que se chega é que somos condicionados aos finais felizes - ou, pelo menos, justos. É o que gostamos. Mas não é assim que termina (ou segue) boa parte dos relacionamentos. Muito menos os enredos dinâmicos dos noticíarios.



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