terça-feira, 9 de fevereiro de 2016 | By: Daíza de Carvalho

Muita desgraça para achar graça

COLUNA RELEITURA - 09/02/2016

Muita desgraça para achar graça

Daíza Lacerda

O brasileiro é mesmo muito hipócrita. Reclama horrores da política, da economia, dos rumos perigosos que o país vem tomando. Mas... não há tempo feio no carnaval!
Enquanto o país de passos lentos para de vez para a folia, as letras surgem, quase tímidas, espremidas ao lado da foto da mulher nua: "País caminha para a pior recessão de sua história". Mas vamos deixar para lembrar disso depois da quarta-feira de cinzas, depois do transtorno e mortes na estrada, depois que as alegorias que custaram milhões virarem sucata nos arredores da Marginal Tietê.
Convenhamos: o cunho cultural que um dia foi a razão de ser do carnaval está perdido há décadas. A não ser por núcleos muito específicos país afora, não existem composições, intervenções ou personagens fortes o bastante para atravessar gerações. Nada que tenha aparecido recentemente. Portanto, não há o que justifique, em tempos de crise, minar o potencial produtivo (ou pelo menos a tentativa) durante tanto tempo. Muita gente com coisas para resolver terá que esperar a eternidade de três dias até que o paciente Brasil saia do coma. Gostando do carnaval ou não, sujeita-se a ele.
Quantas vezes na história vimos o brasileiro se mobilizando quatro dias consecutivos ou mais no corpo a corpo para algo que não fosse o "alalaô"? Historicamente, enquanto descansamos ou curtimos, outros povos vão à luta.
Mas também existe a luta invisível no carnaval. Para servir os foliões, a quem pode esbanjar no ano da recessão, mais crianças do que podemos supor são recrutadas para vender, atender, levar. Até sábado, mais de 600 crianças haviam sido identificadas em situação de trabalho infantil em Salvador. Imagine o que não é fiscalizado.
Também é o período em que se torna evidente a nossa animalização. Como os que urinam em plena rua. Pode ser que tenha sido muito diferente em outras épocas. Mas parece que o carnaval consegue extrair o pior de muita gente, em muitos lugares.
Mais uma: numa sondagem do Instituto Data Popular, 61% dos homens abordados afirmaram que uma mulher solteira que vai pular carnaval não pode reclamar de ser cantada; 49% disseram que bloco de carnaval não é lugar para mulher “direita”; e 56% consideram que mulheres que usam aplicativos de relacionamento não querem nada sério. É o que tem para hoje, meninas.
A folia perde força, é verdade. Tanto que, neste ano, apareceram discursos digníssimos em linhas como "não faremos carnaval, vamos usar o dinheiro para comprar uma ambulância". Sério? Agora?
Não saberia dizer até que ponto, hoje, há vantagens econômicas e culturais para cidades que abraçam o carnaval. Mas sei que o custo é alto para quem mora nessas cidades o ano inteiro pagando imposto e não consegue se locomover no próprio bairro em épocas como essa. Com o dinheiro, vêm a sujeira e os danos ambientais (há ongs que trabalham só para tirar plásticos jogado no oceano). Afinal, vantagem para quem?
A contrariedade não é porque o que vai ficar no imaginário das crianças são as letras de cunho sexual. Não é pelos bebês indesejados que vão nascer em novembro. Não é pela energia e dinheiro gastos para colocar tudo em "ordem" depois. Daqui a seis meses não vão lembrar nem qual o enredo da campeã, nem o nome do cara que beijou no bloco. É pelo tempo útil perdido, ano após ano, num país que não se pode dar o luxo de perder tanto tempo. Principalmente agora.

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