terça-feira, 26 de abril de 2016 | By: Daíza de Carvalho

Ode à cidade

COLUNA RELEITURA 26/04/2016

Ode à cidade

Daíza Lacerda

Os entusiastas da corrida urbana podem dividir o campo de prova, a rua, com os melhores e mais rápidos, enquanto isso não é possível em muitos outros esportes. Afinal, não há simples mortais dominando a bola num Allianz Parque ou jogando tênis no Roland Garros. Na manhã de domingo, nas ruas de São Paulo, eu era uma das milhares de mortais passando pelo rastros (já frios!) de quenianos e da elite brasileira nos 42 km da maratona, cruzando ao menos uma vez com os heróis da resistência física e mental, ainda que anos-luz atrás deles. Embora o alto rendimento separe os nossos mundos, eles enfrentaram o mesmo asfalto que eu, quilômetro a quilômetro.
A cidade foi minha cúmplice. Para vencer a distância, nada melhor que o próprio quintal como campo de treino, com o que de mais desafiador a terrinha tem a oferecer, entre ladeiras e falta de sombra. Diversas sugestões de matérias e ideias para artigos neste espaço saíram dos treinos no asfalto ou parques de Limeira, onde gastei muita sola de tênis e litros de suor. Sabendo o que tinha a cumprir, independentemente do tempo, foi possível absorver as belezas (e tristezas) além do asfalto.
Nos parques, é bonito de ver os velhinhos tentando dar um chega pra lá no sedentarismo, arriscando trotes entre as caminhadas. Na pista, nada como a criançada querendo apostar corrida para dar uma animada nos treinos. Nas vias de comércio forte, o trânsito é de donas de casa sob cheiro de almoço no ar. Pra lá e pra cá, gente esperando o ônibus. Gente indo de bicicleta.
As belezas e carências estão por toda parte. Gente deixando a cidade linda plantando flores nos canteiros públicos, ou cuidando de hortas como o seu Ayrton, no Vitório Lucato. Gente deixando a cidade imunda largando móveis velhos na calçada quando o Cacareco não está programado para aquele bairro. Áreas que recebem manutenção, outras que o mato e sujeira tomam conta. O cheiro dos eucaliptos nas trilhas do horto e o odor do lixo deixado por quem não respeita o próprio ambiente. Se as cidades são as pessoas, nosso habitat também é o nosso reflexo.
Buracos que nascem, buracos que pioram. Treino da arte de sobreviver sem tropeços ou tombos em calçadas de péssimas condições. Motoristas que querem passar por cima, outros que dão passagem. Satisfação quando a corrida está mais rápida que os carros tentando entrar na rotatória do anel viário em horário de pico. Raiva quando o longo tempo para conseguir atravessar coloca a média do treino lá embaixo.
Na longa distância, a mente manda mais do que os membros. E foi a mistura de estímulos de tantos cantos da cidade que, talvez, ajudou a talhar o autocontrole para alcançar a chegada, no mesmo organismo de um coração molenga. As ruas da cidade formaram a trilha do caminho de um sonho possível.
Enquanto treinava, via a vida acontecer. Imaginava o que movia tantos anônimos, se a força do cotidiano ou a esperança de dias e condições melhores. Na corrida e na vida na cidade, cada metro adiante é um desafio. Talvez, em ambas, para sermos acolhidos, seja necessário desbravá-las.

Publicado na Gazeta de Limeira.


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