terça-feira, 8 de março de 2016 | By: Daíza de Carvalho

Releitura - Pelo fim da autossabotagem feminina

COLUNA RELEITURA 08/03/2016

Pelo fim da autossabotagem feminina

Daíza Lacerda

"Nunca fui mulher o suficiente para chegar a ser homem". Possivelmente essa foi uma das afirmações que deixaram iradas algumas leitoras do texto de Fernanda Torres no blog "Agora é que são elas", da Folha (http://bit.ly/1Osew92). A mobilização levou a atriz e escritora a fazer outro texto (http://bit.ly/1QdZ96p), pedindo desculpas, com a justificativa que havia reproduzido a sua visão de mulher branca de classe média.
Ela termina o texto da discórdia com uma afirmação que concordo plenamente: "Fora as questões práticas e sociais, muitas vezes, a dependência, a aceitação e a sujeição da mulher partem dela mesma. Reclamar do homem é inútil. Só a mulher tem o poder de se livrar das próprias amarras, para se tornar mais mulher do que jamais pensou ser".
Há mulheres que são submetidas a amarras. E há mulheres que se submetem a elas, mesmo que ninguém obrigue. Pessoas conformadas em viver à sombra, por conveniência ou por estarem condicionadas demais a determinadas situações para reagir e agir obedecendo àquilo que, de fato, lhe fariam plenas.
Um exemplo brilhante neste sentido é Claire Underwood, a primeira-dama da série House of Cards. Não é santa, mas cheia de ambições e não vê limites para chegar ao que quer. Só que o marido, Frank Underwood, é tudo isso elevado à enésima potência, deixando de tratar a sua esposa e braço direito como companheira para transformá-la numa peça que deve ser manipulada no jogo como ele bem entender, no desespero de manter a presidência a qualquer custo.
Temos muitas Claires por aí. Talvez não tão ambiciosas, mas que se deixam levar pelo jogo. Que têm mil desculpas para justificar o adiamento dos próprios sonhos e vontades por fatores externos. Há a família. Há a carreira. Há o nome, a reputação.
Na ficção, poder e opinião pública em plena campanha presidencial não são fortes o bastante para que Claire deixe de quebrar as correntes de sua autossabotagem e dê um belo pé na bunda no homem mais poderoso do país no final da terceira temporada.
A submissão às pequenas ou gigantes anulações cotidianas são principalmente em nome da família, inclusive com a ingratidão como retorno. Na maioria das vezes, não dá para discutir com uma mãe. Não existe razão para paixões natas. Mas, se não dá para negociar com a biologia, são largas as possibilidades acerca dos padrões sociais.
Por quê uma mulher tem de se explicar pela opção de não ter filhos? Ou de ter um relacionamento e não querer casar? Ou de não ter um relacionamento e querer adotar uma criança? Acredito que ainda é grande a parcela das que se submetem ao roteiro como manda o figurino pela indisposição de argumentar as vontades próprias contra um senso enraizado praticamente desde sempre, que não necessariamente faz sentido para elas. Há pessoas felicíssimas seguindo os padrões. Outras que não veem esse caminho como ideal não deveriam hesitar em mandar às favas a família que cobra o casamento, o primeiro filho, o segundo, os netos...
Algumas dessas opções são muito bem aceitas quando é escolha de um homem. Mas vira um carnaval de pitacos quando é da mulher. A diferença está em saber se impor, e acredito que é isso que a Fernanda quer dizer quando afirma que nunca foi tão mulher para ser homem. Assim como admiro a eterna Pagu, da Rita Lee, que é mais macho que muito homem. Não é questão de feminilidade. É questão de querer, ser e fazer. Pior do que não ter direitos, é não fazer jus aos que temos. Como o livre-arbítrio. 

Publicado na Gazeta de Limeira.

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