sexta-feira, 13 de abril de 2012 | By: Daíza de Carvalho

Nossa vida que nem mesmo a gente vê


"E se você pudesse abrir o cadeado da sua vida?". A pergunta veio de supetão. Mas, por força das circunstâncias, e indiretamente, eu já me preparava para ela. Cogitei olhar do lado de lá do portão, mas ultrapassar limites, que não passam de uma cortina de fumaça, é outra história.
Que cadeado? Como assim? Somos tão condicionados à nossa prisão, que sequer nos damos conta de que estamos em uma. Da nossa casa. Do nosso trabalho. Da nossa rotina. Da sociedade como ela nos quer. Como devemos nos adequar socialmente, economicamente, fisicamente. Tudo não passa de jaulas.
Não, não estou amargurada. Mas o choque de realidade, como caldo de galinha, não faz mal a ninguém. E imergi nisso por meio de histórias de gente que nunca vi, senão pelo detalhamento de suas "esquisitices", "loucuras", ou tragédias. Quem me contou foi a Eliane Brum.
Eliane Brum é gente que fala de gente como a gente. Mas que, nem por isso, gente como eu e você consideraria gente. Ela transpõe, com palavras, vida e alma de desconhecidos, daqueles das periferias, dos becos, dos buracos, do rés do chão. Aqueles que não notamos a presença quando passamos numa rua ou na praça, porque estamos preocupados demais em manter as nossas jaulas imaginárias para notar os outros. Ainda mais com o outro desconhecido, e que nada significa para mim.
Mas todo mundo significa algo para alguém. E parece que, em nossas jaulas, não há espaço num vão sequer para esse senso de humanidade. São essas vidas miseráveis que viram poesia, engraçada ou triste, no texto de Eliane. Com ela, eu mergulhei na vida dos outros, para nadar na minha própria.
Domingo, com a segunda-feira já batendo as portas, estava fazendo o que sempre faço: conversando com alguém pela internet enquanto via o que havia de novo no Facebook, do qual já andava reclamando. Cansei, e me dei o desafio de passar os "dias úteis" sem sucumbir àquele ladrão de tempo. As primeiras horas da sexta-feira já chegaram, e mantive firme o propósito. O Twitter também ficou de castigo.
O que eu poderia fazer de melhor em vez de ver correntes, reclamações, campanhas? Bom, além de colocar em dia os episódios de um seriado (calma, um vício de cada vez!), comecei a ler "A vida que ninguém vê", da Eliane, prêmio Jabuti de livro-reportagem em 2007.
Confesso que estou quase obcecada por ela. Eu queria ser como o Ricardo Kotscho quando crescer, mas agora estou em dúvida. O que eu queria mesmo, para o resto da minha vida, era praticar o modus operandi de Eliane. Trazer à tona história de gente desconhecida. Conhecer sobre o que ninguém se interessaria, ou ousaria perguntar. Simplificar. Ouvir. Contar.
Sinceramente, não me interesso pelo sobe-e-desce da bolsa. Tenho pavor do teatro dos vampiros da política (se é que os vampiros merecem uma comparação dessas..). As celebridades já têm gente demais pra cuidar da vida delas. E, no fim das contas, com o que, ou melhor, com quem um leitor, um telespectador se identifica?
As dores, as aflições, as alegrias da vida. Tudo isso tem um significado único para cada um. O que pode ter todas as proporções do mundo. O que é o valor da vida para alguém que está fadado a passar o resto dos dias imóvel num quarto? O que vale tentar lutar não contra uma deficiência física, mas contra o preconceito que impõe a incapacidade para a mais esforçada das pessoas? O que significa ter um trabalho simples, e viver sonhos com ele, mesmo se prostando aos outros como superiores? Pedir esmola, ou não pedir esmola. Precisar de atenção, carecer de uma chance.
A vida é muito mais do que passar o dia atualizando status no Facebook ou executando um trabalho do mesmo jeito, todo dia. A gente não foi programado pra só "dizer sim, sim"... E aceitar o que nos impõe jaula adentro. Mas, como é que se foge disso? Eu quero descobrir.
Por mais que pareça besteira, essa reclusão das redes sociais não chega a ser um passo, mas um leve arrasto numa convicção que falta ser colocada em prática. Nós somos donos do nosso tempo. Inconscientemente, porém, voluntariamente, deixamos que terceiros (quartos, quintos) se apropriem e façam dele não necessariamente o que nós gostaríamos. Enquanto a vontade fica só no "se"...
Eu reconheço que tenho muito tempo livre, e não uso devidamente. E não é de hoje. Já perdi anos à toa. Mas, nesta semana, não. Embora não tenha executado a promessa antiga das caminhadas, me apropriei do meu tempo, optando por ler Eliane. Me infiltrei voluntariamente na vida alheia, para aprender sobre a minha. E, que coisa, isso não acontece quando comentamos sobre a situação do vizinho ou o novo affair da celebridade da vez. Porque Eliane traz das vidas alheias o que realmente importa - e ensina.
Moral da história é que sobrevivi sem face e twitter. O próximo passo é esquecer que e-mail existe aos finais de semana, já no dia a dia o trabalho exige. Também não quer dizer que quero me isolar do mundo, mas pensar mais em mim. Me dedicar ao que posso melhorar e aprender. Mas, pra não cuspir no prato que comi, ou melhor, na página que compartilhei, começo a colocar em prática uma das correntes exaustivamente rodadas do face. "Livros não mudam o mundo. Livros mudam pessoas. Pessoas mudam o mundo".
Mudar o mundo é pretensioso demais. Mas já estou satisfeita. Começo a remanejar as peças do meu próprio mundo, incluindo o cadeado que me prende a muitas coisas, que hei de destrancar. Começo a ver a minha própria vida além das grades. Começo a ver a minha própria vida. É uma grande coisa.

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