sexta-feira, 20 de abril de 2012 | By: Daíza de Carvalho

É para ser?

Não acabam neste mundo as coisas inexplicáveis. A morte é uma delas, embora seja esta a única certeza da vida. Não adianta eu tentar me esconder da morte sobre duas rodas. Embora esteja indo bem como uma sobrevivente.
Nesta semana a prefeitura divulgou uma enxurrada de números sobre o trânsito da cidade. É claro que não dá para esperar nada otimista com a situação das motos. Muito pelo o contrário. Esse veículo, movido com paixão por alguns, ainda é arma para outros.
Nesta semana também morreu em outra rotatória de Limeira uma jovem, Letice, de apenas 23 anos. Estava de moto. Deixou um filho de 10 anos e uma vida inteira na condicional - o que "seria". O motorista do caminhão que passou por cima dela disse que não a viu ao fazer a manobra, já que ela estaria posicionada em seu ponto cego. Quem pode explicar de quem é o erro?
No ano passado, Johnny estava com uma Hornet na Lauro Corrêa, onde morreu a caminho de sua casa, que nunca chegou. Estudamos junto no colegial. Naquela época ele já andava de moto, embora não tivesse idade para habilitação. Foi o último de seus vários tombos. Ouvi dizer que, alguns dias antes de sua morte, ele teria dito que era um gato, com sete vidas. Teria gasto todas as fichas?
Numa outra ocasião, eu chegava em casa do trabalho, num sábado à tarde, quando vi, na saída de outra rotatória na Lauro Corrêa, a moto num lado e os dois ocupantes, cada um em outro. Chovia. Devidamente vestida com a capa, desci para ver se era alguém conhecido e, como já tinham chamado socorro (a aglomeração já era grande), fui pra casa. Não sem a imagem de um deles gemendo de dor, com o pé totalmente torto virado para o lado oposto ao que a natureza fez, fora a condição terrível do acompanhante. Ambos vestidos de camiseta, calça e tênis. Dias depois, a notinha no jornal sobre a morte de um deles.
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No trabalho, gosto de escrever ouvindo música, com um fone que veda o ruído externo. Isso ajuda a me concentrar emmeio ao falatório. Entre um texto e outro, hoje ouvi novamente, na rádio online, uma música que há tempos tentava identificar. Era a "Remember It's me", do Gotthard. Tudo o que conhecia da banda era os hits que sempre tocam na Kiss, inclusive Lift U Up, que foi amor à primeira ouvida e que sempre me dá um gás quando estou pra baixo, como o próprio nome e melodia sugerem.
Fui atrás da balada "Remember", encontrada para download no site da banda. Mas quando se gosta de uma, duas, três, ir atrás do resto é inevitável. Foi assim no passado com Heart, e recentemente com Grand Funk Railroad. Porém, bad news. Me lembrei da notícia, mas não conseguia associar porque não havia pesquisado a banda a fundo ainda.
Steve Lee. O rock tem muitos filhos chamados Steve, Steven. Se um dia eu tiver um filho, é quase certo que ele tenha este nome também (para honrar Steven Tyler, Steven Morrissey, Steve Vai...). Tão certo quanto ele deverá gostar de rock e de moto, como eu. Como gostava o Steve Lee. Tanto que se exilou de temporadas de shows para viajar pelos EUA com amigos, a bordo de Harleys. E fiquei chocada com a estupidez da morte dele, em 5 de dezembro de 2010, parado com sua moto no acostamento de uma estrada de Las Vegas, quando vestiria a capa de chuva para seguir viagem. Com a estrada escorregadia, um caminhão derrapou na pista e bateu nas motos. Uma delas voou sobre o vocalista do Gotthard. Só bateu nele, e ele morreu, em frente a um dos companheiros de banda e de sua namorada, que saíram ilesos, como a outra dezena de motociclistas. O Gotthard continua. Agora com outra voz. But remember...  
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Não é ridículo? Não é inexplicável? A gente tenta achar motivos para todas as mazelas do mundo, e, no fim, temos de nos conformar com um "era pra ser", ou "tinha que ser assim". Pensa na forma mais improvável de uma pessoa morrer de moto. Pois é.
Muita gente gosta de coisas perigosas e vive e morre com elas a todo o tempo. Cigarro, bebidas, drogas, más companhias. Motos. Como se explica uma morte ocorrida com moto? Quantas vezes consegue se determinar se era culpa do motociclista, ou do motorista de outro veículo, ou das condições? Ou da vontade de Deus?
Era para ser? Penso em Letice, que eu não conhecia, e penso em Steve Lee, que conheci hoje. Ele tinha 47 anos e dava voz a uma música mais linda do que a outra. Era para ser? Não sabemos, mas a moto taí pra servir de culpada. Ela é? Também não sei.
Muitas vezes já senti muito medo de que algo pudesse acontecer comigo, de carro ou de ônibus. Seria uma puta sacanagem do destino eu andar de moto toda a minha vida habilitada e sofrer alguma coisa com qualquer outro veículo. Não que eu espere más surpresas com a moto, é claro. Mas tento me preparar contra elas. Que rondam a todo instante enquanto rodo.
Mas vou fazer o quê? Há pessoas que morrem na sala com um caminhão atravessando a parede enquanto assistiam TV. Outras atravessando a rua, atravessando o mar. Não sei o que posso encontrar a cada acelerada ou freada. Não sei se meu fim "é pra ser", um dia, de moto. Ou de bicicleta, ou dormindo. Nem ouso tentar saber.
Nada pode alentar uma família que perdeu alguém. Nada pode fazer alguém não ter o estômago revirado ao ver uma moto, depois de perder alguém querido com este veículo. Mas a gente nunca sabe o fim da linha. Por isso acho que devemos valorizar a travessia. De toda viagem que faço, agradeço poder voltar. Mas se eu não curtir o "durante", não valeu todo esforço pra comprar uma moto. Para ver pessoas, lugares. Para viver. A vida é travessia. Tudo o que podemos fazer é aproveitar a infinita highway, enquanto se pode. Acho que Steve fez isso. E Letice?
Não tenho o poder de consolar ninguém, e nem quero tentar, porque sou péssima nisso. Só sei refletir comigo mesma, ainda que sem chegar a conclusão alguma. Mas com essa mistura de desgraças com moto que tenho ouvido e lido nos últimos dias (na verdade, desde sempre que VIVO de moto), hoje concluí que, se a morte pode estar nas coisas mais estúpidas, a vida pode estar nas mais simples. Não basta?












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