domingo, 22 de abril de 2012 | By: Daíza de Carvalho

Casarão do Tatu: da soberania ao esquecimento

Apesar da troca emergencial do telhado, prédio está em ruínas por dentro

Daíza Lacerda

Está no retrato em preto e branco: o casal alegre, recém-casado, prestes a cortar o enorme bolo. Naquele 6 de dezembro de 1969, a festa foi até altas horas no casarão do Bairro do Tatu. Foi a celebração da união de Maria José Spagnol Moraes e José Olívio Moraes, um dos vários casamentos festejados no salão principal, o mais nobre dos 33 cômodos da residência erguida com barro, pela força dos escravos.
Das grandes janelas do salão, o patrão (ou patrões), como Cunha Bastos, o primeiro morador, tinha à vista todas as colônias onde, no último século, chegaram a abrigar até 40 famílias. Das cerca de 30 casas, resta a metade.
O glamour da casa grande ficou nas fotos, na lembrança dos inúmeros bailes realizados ao som de sanfoneiros, na fachada, que mantém as características. Por dentro, o cenário é da riqueza em ruínas. Quando abertas, as enormes janelas deixam bater o sol ora em paredes mantidas com o barro, estrume de vaca e cipós à mostra, presos por barras de madeira, ora com cimento remendando a engenharia rústica que sucumbiu às chuvas torrenciais.
O lugar, que das glórias dos senhores afundou no esquecimento, ainda guarda as suas riquezas, embora muita coisa tenha sido perdida, como pedaços de madeiras com marcas dos pés dos escravos, que nelas passavam para não sujar o chão, durante a construção. Ainda jaz, em meio à bagunça, um fogão à lenha.
Apesar do receio da passagem pelo salão principal, cujo acesso pelo fundos é feito entre escombros do telhado, que jazem ao chão, a madeira parece frágil. É tão resistente quanto o concreto. No porão, são inúmeras as barras de madeira de lei (que podem ser peroba, cabreúva, aroeira, jequitibá ou guarantã), com um palmo (grande) de largura que fazem a base do chão onde um dia imperou os senhores. Apesar das marcas do tempo, a resistência impassível é visível, tanto quanto as paredes de barro, grossas mais de um metro para o sustento do andar superior.
O forro, que hoje não existe mais, era de taquara de bambu. O telhado foi totalmente trocado em 2010, em serviço emergencial feito pela Prefeitura, que a queda de parte da estrutura derrubou também algumas paredes, e colocava outras partes da casa em risco. No chão, tijolos de barro e pedras. O caminho da entrada da propriedade até a casa continua o mesmo décadas a fio, com paralelepípedos.
Em outro lado do porão, sinais de possível morada dos escravos. Ganchos no teto e um buraco redondo numa das paredes, como única entrada de ar, com a porta fechada. Ali não janelas, como em todos os lados do piso superior. na frente da casa, são 12, além das outras 11 nos outros lados.
Na foto do casamento de Maria e José, hoje com 63 e 72 anos, é possível identificar, aos fundos, a parede do salão, com algumas marcas. Muitas pinturas depois, a coloração original daquela época foi redescoberta, com os detalhes artísticos nas bordas das paredes e portas. Uma beleza delicada, relegada à poeira. Não aquela levantada pela alegria dos convidados. Mas a do esquecimento.



Imóvel mais antigo de Limeira tem fachada conservada e por dentro apenas ruínas
Imóvel mais antigo de Limeira tem fachada
conservada e por dentro apenas ruínas


Maria e Moraes, ao fundo: recordações da festa de casamento no casarão
Maria e Moraes, ao fundo: recordações
da festa de casamento no casarão




Autossuficiente, fazenda
funcionava como uma cidade


O casal cresceu junto entre o casarão e as colônias. No registro de 1969, é notável o topete de Moraes. Topete teve, ainda, o camponês que lidava com cana-de-açúcar, de paquerar a filha do patrão. Alcides Spagnol, pai de Maria, era um dos irmãos proprietários da fazenda a partir de meados dos anos 50. Ele trabalhava para os irmãos Giacon, donos antecessores, e últimos a morar no casarão. "Quando eles se mudaram, haviam construído essa casa ao lado, na qual um dos irmãos morava", conta Moraes.
O fato é que, desde a infância, esta era a terra não do casal, como do restante da numerosa família. Tão grande que, às vezes, sacrificar um boi para todos era insuficiente, como lembra Maria e sua mãe, Nair Pértile Spagnol, de 83 anos, que criou os oito filhos no local. "Tudo nós fazíamos aqui. Criação, cultivo. Todo mundo trabalhava e todos supriam as próprias necessidades", conta Maria. Até chegar o dia em que foi necessário comprar carne. Comprar tudo.
A fazenda, até então autossuficiente com mão de obra dos trabalhadores e moradores, mais de duas décadas deixou de ser a fonte de renda das famílias. "Os mais velhos cuidavam, plantavam. As gerações seguintes se interessaram por outras coisas, foram estudar, trabalhar, viver na cidade. Ficou difícil achar quem trabalhasse no campo", lembra ela.
Hoje, com a maior parte dos 120 hectares arrendada para a usina para a plantação de cana, quem vive nas casas que formavam a colônia ou é aposentado, ou trabalha na cidade. Mas as criações não foram extintas: cachorros desconfiados com quem chega e galinhas sossegadas habitam o grande quintal.

O REINO DA "BRANQUINHA"
Foram muitos os gados criados, mas a época das "vacas gordas" mesmo foi quando o engenho operava a todo o vapor, na fabricação da cachaça "Espanholinha". "Olha, trabalhei aqui por umas vinte safras. Descia tudo isso aqui carregando cana para moer", relembra, saudoso, Moraes. Do engenho, sobrou a chaminé de . E uma das casas, reformadas, que era o depósito da "branquinha", que era levada até para São Paulo.
Depois de casado, José ainda trabalhou no engenho, que fora vendido e depois desativado.
Outro resquício de necessidades antigas é uma espécie de tanque de pedra, que deve ter pelo menos meio século de idade. Mas se mostrava moderno: lavadeiras não precisavam lavar roupas nas pedras de rio, mas no tanque com um grande cano de ferro, de onde vinha água da nascente localizada a cinco quilômetros. (Daíza Lacerda)






Moraes e o tanque onde eram lavadas as roupas: encanamento moderno
Moraes e o tanque onde eram lavadas
as roupas: encanamento moderno


Situação do prédio, mais antigo
de Limeira, ainda é incerta


De acordo com a presidente do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico e Arquitetônico de Limeira (Condephali), Juliana Binotti, na época da reforma do telhado do casarão, no início de 2010, havia intenção de a Prefeitura desapropriar o imóvel, que seria utilizado, entre outras atividades culturais, para exposições.
"Na época, houve acordo com a família no Ministério Público, que autorizava as intervenções. Houve o decreto de desapropriação, mas não se sabe se foi homologado", explica ela, que foi reeleita para presidir o conselho na semana passada. Os trabalhos do Condephali estavam parados no último ano, devido a alterações na lei.
Juliana lembra que o prédio, que é o mais antigo de Limeira, está em processo de tombamento. Datado da década de 1820, o primeiro morador foi Cunha Bastos, proprietário e doador das terras que hoje é Limeira. "Era um complexo grande, com senzalas e estrutura para beneficiamento da cana, na produção de açúcar, coisas das quais hoje não mais vestígios", diz a arquiteta. (Daíza Lacerda)



Artes nas paredes do salão principal resistem à deterioração do imóvel
Artes nas paredes do salão principal
resistem à deterioração do imóvel




Publicado na Gazeta de Limeira, também na capa. Original em pdf aqui

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