domingo, 22 de abril de 2012 | By: Daíza de Carvalho

Dona Ana, a mulher que atravessou o século

Enquanto costura, a centenária pensa em voltar a plantar, colher, e cuidar de animais

Daíza Lacerda

Sentada no quintal, dona Ana Moreira costura, à mão. Coloca a linha na agulha, e não usa óculos. Assim, une retalho a retalho, no qual forma um lençol. As roupas que usa também foram montadas com suas mãos. "Em vez de pedir ou roubar, costuro".
Ela conta 111 anos. Mas seu nascimento seria datado de 1898, em Ribeirão de São Félix, em Minas Gerais. "É longe, minha filha. para caminhar quase um mês para chegar", mensura.
Dona Ana não se prende a datas ou idade que tinha em cada fase da sua vida. Se atém apenas à sequência dos fatos que culminaram com sua vida e velhice em Limeira, onde vive com duas filhas. Dos outros quatro filhos, três deles homens, não tem notícia. "Estão longe".
Seu semblante não é frágil. Tanto impõe autoridade quanto se desfaz em gargalhadas. O lenço na cabeça cobre os cabelos brancos, mas as rugas estão à mostra nas grandes bochechas. Descalça, também não esconde os calos dos pés, que quer levar de volta ao campo onde nasceu e viveu. "Me ensinaram a fazer casa, plantar, roçar, colher arroz. Mas ler ninguém ensinou não", conta ela, que não vai à cidade. "As meninas é que vão para mim", emenda, sobre as filhas, idosas.
Dona Ana enterrou pais, enterrou marido, ainda em sua terra natal. Foi quando vendeu sítio, cavalo e bode, antes de fazer pouso breve no Paraná, e seguir para Limeira. "Mas a minha vontade é de roçar, plantar e colher, criar porco, galinha e cachorro", diz ela, que de todas as vontades conserva uma única galinha, seu elo com as lembranças do passado de trabalho.
"Numa hora dessas da tarde, estava com o saco de feijão na cabeça, para levar para venda na cidade", transporta-se.
Sua mãe morreu quando a centenária era bebê. "Madastra? O diabo arrasta!", pragueja, sobre a que teve e não a deixava comer. "Daí eu matava passarinho mato afora para comer", conta ela, que gosta de tudo. "Como tudo quanto . não como sapo. Tudo o que não tem veneno. Como de tudo e nada me faz mal".





De ponto em ponto, o conto de dona Ana Moreira remonta há mais de um século, sobre sua origem em MG
De ponto em ponto, o conto de dona Ana Moreira
remonta há mais de um século, sobre sua origem em MG


VIDA MODERNA
Ela tem medo de hospital e não gosta de médico. algum tempo passou mal e gastou com remédios. "Passei por sete médicos, que não garantiram que eu sairia da mesa". Na inquietação de quem viu os dias nascerem e morrerem preenchidos com trabalho, numa feita rachou a testa, ao cair na calçada. "Precisaram coser acima do olho. Sete pontos", diz, com certo riso de criança travessa.
Remédio, para ela, é o que tinha ali no quintal, no campo. "Bebo remédio do mato. Trata tudo quanto . Farmácia é para gastar dinheiro". Palavra de quem teve todos os filhos em casa, alguns com parteira. Com os outros, Deus ajudou. "Nesses, quando a parteira chegou, eu estava tomando uma pinguinha", diverte-se ela, que apreciava a "branquinha" enquanto podia, assim como as danças noites adentro.
Ela fala da falta de firmeza de uma das pernas, depois de escorregar da escada, em outro trabalho às escondidas das filhas. Confessa que foi ao mercado escondida. Mas com responsabilidade. "Os carros estão matando gente na estrada. Mas não ando no meio da rua. Carro, bicicleta, moto. Tudo mata gente". Ao ser contrariada da sentença que acabava de dar, dispara. "Mata não? deixa aleijado!", retruca, antes de cair na risada.
Nunca dirigiu carro, nem voou de avião ("Ave Maria!"). O comando da máquina de costura também deixou. Andou muito. Pegou muitos ônibus. Mas cavalo ela ainda gostaria de voltar a montar. "Mas um manso, não tenho mais segurança", admite. "Quando se é novo, é uma beleza. Mas o velho fica enjoado com qualquer pessoa, não aguenta nada".
Em Minas Gerais, não tinha dia nem noite em que não pudesse andar. "Fazia o cavalo passar onde fosse. Andava com duas esporas, uma garrucha boa, de dois canos, e o facão. E, olhe, a garrucha não negava". E garante que ainda é boa de briga. Além da galinha sassaricando no quintal, não fica sem arma: o facão fica guardado, mas sempre à mão. Caso precise.
Depois de coser os olhos num Dia das Mães e ter os joelhos azuis da cor do anil, ela não deixa de se impor. "Conversa comigo é alta. Esse negócio de resmungar em me-me-me pra mim é gato".


Dona Ana passa os dias cosendo; de retalho em retalho, faz lençóis e a própria roupa
Dona Ana passa os dias cosendo; de retalho
em retalho, faz lençóis e a própria roupa


VÍCIOS E VIRTUDES
Ela mostra tão rápido, que quase não para ver o cachimbinho guardado no bolso da saia. "O doutor proibiu, mas às vezes tiro uma fumacinha", confidencia. O cachimbo chegou depois da morte do marido. Mas o cigarro de palha, ainda quando era criança, e o pai fazia para afastar os mosquitos. Daí para o vício, um passo. Mas o doutor também cortou.
Não seria necessário perguntar, mas ela responde: quando acorda, pensa em trabalhar, "livre da palavra dos outros, graças a Deus". Sem carteira de trabalho, aposentou-se pelo fundo rural.
O mundo além de sua agulha e linha e lembranças da roça se resume ao pouco que vê de TV. Alheia a política, mercado financeiro, imobiliário, conflitos entre países, ou viagens do papa, ela diz que não gosta de ver muita coisa. E irrita-se com o pouco que vê. "Mulher pelada? Não fui criada desse jeito", reprova ela, que teve oito irmãos.
Fora a roça e a costura, do que gosta dona Ana? "Gosto de tudo quanto há. Só não gosto de pedir ou roubar", remenda, para traçar firmes os pontos de sua dignidade.
Conselho bom, quem dá é o velho. O jovem não está ouvindo conselhos. Mas e se algum ouvisse? "Diria para tratar todo mundo bem, não andar com cachorrada. Conselho ruim a gente não pega. O bom, aceita se quiser".
De tanto andar, plantar e cuidar, o que aprendeu, a dona Ana? "Aprendi foi emendar retalho. É a cabeça, minha filha", sinaliza a autodidata no ofício.
Entre um ponto e outro, dona Ana almoça e janta, com tudo preparado por suas meninas. Casa, arruma cedo. As roupas elas lavam. Na casa dos outros, não gosta de ir.
No intervalo das costuras, com sua caixa de retalhos e carretéis, onde a agulha vez ou outra teima em se esconder, bebe água e café, que adora, tanto quanto um pagodinho. "Só não sei roubar. Mas meus servicinhos eu faço", diz, entre um amontoado de linhas e outro, a centenária que gosta de tudo quanto há.

Publicado na Gazeta de Limeira, também na capa. Original em pdf aqui




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