domingo, 26 de abril de 2015 | By: Daíza de Carvalho

"Sonhar faz parte da sobrevivência"

Sobrevivente dos horrores do nazismo, Nanette Blitz Konig refletiu a história em Limeira

Daíza Lacerda

Os olhos muito azuis de Nanette Blitz Konig são uma máquina do tempo. O que eles viram na década de 1940, no Holocausto, a atual geração pode ainda não ter noção da devastação que representou na história da humanidade. Aos 86 anos, de cabelos branquinhos e magra, o porte de Nanette parece frágil. Mas é firme, assim como suas convicções sobre a política atual. Sem perspectiva de vida em sua juventude, quando virou pele e osso num campo de concentração, Nanette foi porta-voz de um tempo e do próprio passado a dezenas de jovens e adultos na tarde de quarta-feira, no auditório do Senac Limeira.
Com pai banqueiro e infância em boas condições em Amsterdã, na Holanda, Nanette mal tinha 15 anos quando foi para um campo de concentração. A ofensiva nazista cercou a Holanda em 1940. Com a entrada dos alemães, os judeus não podiam mais estudar em escolas públicas, e foram enviados para escolas só de judeus. E foi no Liceu Judaico, em 1941, que Nanette conheceu Anne Frank, autora do célebre diário em que detalha os dias no esconderijo com sua família judia, que pouco antes havia se refugiado do nazismo na Holanda. "Era vivaz, crítica, gostava da vida, de escrever, e gostava dos meninos. Eu não havia chegado nesse período ainda", conta. Em 1943, as escolas não existiam mais.
Foi em fevereiro de 1944 que Nanette foi levada ao campo de concentração em Bergen-Belsen, na Alemanha, onde reencontraria, pela última vez, a amiga de escola. "Filme de terror" não descreve o cenário exposto por ela. "As condições eram deploráveis. Fome, doenças, maus tratos, latrinas imundas e piolhos, com proliferação do tifo".
Somente em abril daquele ano, com a entrada dos ingleses, que receberam comida. Mas os prisioneiros estavam no extremo de terem se desacostumado a comer. "No fim da guerra eu pesava 31 quilos, sem carne, só ossos no quadril", descreveu a sobrevivente.
O começo do recomeço de Nanette foi por meio de um major inglês no campo. Ela pediu a ele que fosse entregue uma carta à tia. Com o pedido aceito, a família soube que ela sobrevivera. Mas ela passaria, ainda, por outros locais, tendo trabalhado numa cozinha e posteriormente contraído tifo. A doença a levou a um coma, e ela acordou no hospital. Posteriormente foi encaminhada a outro, onde pela primeira vez em muito tempo viu uma cama com lençóis. Registrada com número, pode ser identificada e localizada. Mas ainda passaria três anos num sanatório para se recuperar dos efeitos do Holocausto, antes de uma tia vir da Inglaterra buscá-la com seus tutores, em 1948.
Mesmo depois da guerra ela reencontrou o major. "Ele disse a nós que não queria pagamento ou agradecimento, apenas saber se havia cumprido o objetivo de me unir à minha família".
Casada há 62 anos, o marido de Nanette é da Hungria e também perdeu familiares. Ele já tinha passagem para o Brasil, em período em que namoraram por cartas. Em 1953 ele a pediu em casamento, e desde aquele ano ela vive no país, onde teve seus filhos, estudou Economia e trabalhou com traduções.
O DIÁRIO
À plateia, ela contou como reconheceu a amiga no campo de concentração Bergen-Belsen, na Alemanha, quando uma divisão de arame farpado que separava a área maior da menor foi retirada. O encontro foi descrito por ela como emocionante, embora ambas estivessem numa situação horrorosa.
"A vi andando no campo com asua irmã, através do arame farpado. Quando retiraram, não tinha certeza se ela ainda estava lá. Por sorte a encontrei com a irmã. Éramos meio esqueleto, sem carne, mas Anne estava pior do que eu. Ela estava embrulhada num cobertor, pois não aguentava mais a roupa cheia de piolhos". No encontro, que foi o último, Anne contou a Nanette o que havia passado em Auschwitz, o maior campo de concentração, e da esperança de ainda ter os pais vivos. "Anne contou que pretendia reunir as folhas de seu diário e escrever um livro depois da guerra. Sonhar faz parte da sobrevivência". Desnutrida e com tifo, Anne morreu poucas semanas antes do fim da guerra. Mas o sonho tomou forma e o diário chegou às mãos de seu pai, Otto Frank, único sobrevivente da família. A primeira edição do diário foi publicada em 1947, cerca de dois anos após a morte do restante da família no campo de concentração.
Nanette foi a única de sua família salva das garras nazistas e descreve a morte de Anne como uma das muitas tragédias que viveu. "Ela começa o livro como uma menina de 12 anos. Quando termina, forma a sua opinião, sem contato com o mundo fora, a não ser pelo rádio. Se desenvolveu lendo e estudando. Como ela forma uma opinião é algo excepcional. Se sobrevivesse, seria uma ótima escritora. Tinha dom de escrever".
NUNCA MAIS?
"Foi uma vida muito difícil para superar tudo isso. Minhas tias não permitiam que eu falasse sobre o período da guerra. Elas não souberam lidar com a perda de uma família inteira. E continuaram como se nada tivesse acontecido", revelou Nanette.
Entre memórias e cicatrizes que vão além da pele, passados 70 anos de quando esteve num campo de concentração, ela contou sobre o seu maior aprendizado. "A maior lição é aceitar a vida da forma que ela se apresenta. Quando voltei à Holanda, não tinha mais nada, ninguém. Nem lar, nem dinheiro. E ninguém iria querer uma orfã louca. Então temos de levar a vida".
Mas ela alerta que as ameaças sempre rondam. "Não basta dizer nunca mais. Deveríamos ser conscientes das circunstâncias econômicas e sociais, que foram as principais causas do Holocausto, e reconhecer os sinais de perigo antes que seja tarde demais para agir. O preço da liberdade é a constante vigilância".

Foto - JB Anthero/Gazeta de Limeira
Nanette: "a maior lição é aceitar a vida da forma que ela se apresenta"

"O mundo não aprendeu nada"

No fim da guerra, houve um projeto de lei em que o governo considerava que os pais que sobrevivessem não seriam mentalmente aptos a criar seus filhos. "Perdemos crianças por causa disso. Crianças que não foram devolvidas aos seus pais. Na Holanda, se perguntar se alguém conhece a lei das crianças, preferem esconder ou não saber. O antissemitismo existe até hoje".
A ameaça continua, segundo ela. "Nunca mais existiu indústria de genocídio como dos nazistas. E se Deus quiser, nunca mais existirá. Mas o mundo não aprendeu nada. Parece que não aconteceu nada", diz ela, se referindo aos jovens e grupos radicais. "Para vocês verem o que faz a ignorância, a falta de informação, de não saber aonde eles se metem. É triste. Não basta dizer nunca mais. É preciso reconhecer os sinais de perigo, antes que seja tarde demais para agir".
Nanette veio para o Brasil em 1953, quando se casou. À época, jurou nunca mais voltar à Holanda, onde viveu as dores do nazismo, mas acabou voltando. Ela, que passou anos até se recuperar do tempo no campo de concentração, conta que até hoje tem pesadelos. "A mente humana não tem botão delete. Funciona sempre e não esquece".
Questionada sobre como Hitler arrebanhava legiões, ela cita o livro do ditador, "Minha Luta". "Nele, já define a sua ideia sobre os judeus. Ouvi-lo em alemão é horrível, dá medo. Carismático, doutrinou a todos. Foi eleito democraticamente em 1933 e em meses destrói leis e impõe as que lhe dão direito de destruir os judeus. A Alemanha estava em condições lamentáveis, com desemprego e inflação. Determinou que os judeus deixassem a Alemanha, mas os outros países fecharam as fronteiras". Questionada do motivo de tanto ódio aos judeus, a sobrevivente não soube explicar. "Nunca teve ideia de fazer bem ao povo. Não dá para entender ou explicar. É um perigo até hoje", alerta, sobre a intolerância. (Daíza Lacerda)


"A criminalidade vem do exemplo de cima"

A plateia quis saber a opinião de Nanette sobre os protestos realizados este ano contra a corrupção e pedindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). "Foi novamente eleita. Só se livrar dela não vai adiantar. Tem de se livrar de todos os corruptos. A mentalidade da corrupção faz parte da existência, desde dom Pedro. Vocês viram a verba do fundo partidário? Adivinhem quem vai pagar as multas da Lava-Jato?", disparou.
Nanette elege a ignorância como causa de muitos problemas, a começar pela disseminação de políticas consideradas erradas por ela. "As pessoas não sabem, não entendem o que é governo, não sabem votar ou o valor do voto. Precisamos de cursos para ensinar sobre o governo", diz ela, defensora do voto distrital. "Na verdade tem de mudar tudo.Vota-se para alguém que depois nem aparece. Com voto distrital é possível representação de verdade. Já na rua não há poder de nada. Não vai mudar o governo. A corrupção aqui é muito endêmica. Em outros locais existe, com certeza. Mas aqui é demais. Não consegue nada se não pagar".
Para a sobrevivente do nazismo que adotou o Brasil como lar, o país é rico e poderia ser um dos mais poderosos, se tivesse outro governo. "Mas infelizmente não há interesse. Precisa de educação básica de verdade. Não precisa de faculdade com cota.
O povo tem que saber ler, entender o governo, pois o governo se aproveita dos ignorantes. A criminalidade vem do exemplo de cima. Se todo mundo rouba, eu também posso. Será que não? Infelizmente o que temos é isso. Pura ignorância. E para combater vai demorar. Gostaria de saber como sair disso". (Daíza Lacerda)


Publicado na Gazeta de Limeira.

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